1 O manifesto de Ted Kaczynski

Regressemos a Ted Kaczynski. No seu Manifesto de 1995 – A sociedade industrial e o seu futuro –, Kaczynski debruça-se sobre as implicações de vivermos sob um sistema tecnológico. O seu argumento pode ser resumido da seguinte forma: os seres humanos têm necessidade, provavelmente biológica, de uma sensação de poder, e esta pode ser conseguida através do estabelecimento de objetivos, do esforço desenvolvido para os atingir e da realização desses objetivos – processo que deve ser realizado com autonomia.

O problema é que as sociedades industriais modernas, cada vez mais tecnológicas, eliminam a possibilidade de autonomia, pois transformam-nos em meras peças da engrenagem social, sujeitos a computadores e regulamentos (o desespero da paralisação porque o computador ou o sistema informático parou de funcionar é familiar a todos). E quando o processo de poder não acontece, as consequências traduzem-se na dimensão psicológica: tédio, desmoralização, baixa autoestima, sentimentos de inferioridade, derrotismo, depressão, ansiedade, culpa, frustração (tudo sintomas que associamos com frequência às sociedades industriais modernas, e que seriam muito mais raros nas sociedades primitivas).

Uma vez que, de acordo com Kaczynski, a eliminação da autonomia é inerente à tecnologia, a única possibilidade de evitar a degradação da nossa condição humana é a revolução – não uma revolução política, mas uma revolução contra a tecnologia e a economia. Ted apela a todos os revolucionários que ajudem a criar as condições necessárias para o sistema colapsar por forma a que possamos regressar a uma sociedade pré-industrial: uma vida mais dura, mas mais livre e saudável.

Este é provavelmente o passo mais frágil na argumentação de Kaczynski: ainda que concordemos com a avaliação feita à sociedade tecnológica, será crível que a maioria da população queira regressar a esse modo de vida, sem os confortos e as facilidades que o mundo industrial nos oferece? É o mesmo problema dos movimentos ecológicos mais radicais: como compatibilizar regimes democráticos com as reivindicações de uma vanguarda ambientalista que implicam regredir para uma vida mais “sustentável”? Nesse sentido, Jean-Jacques Rousseau parece mais realista, quando nos diz que legamos às gerações vindouras dependências sem as quais elas já não sabem viver:

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“foi este o primeiro jugo que impuseram a si mesmos sem pensarem nisso e a primeira fonte de males que prepararam para os seus descendentes; pois, para além de continuarem assim a amolecer o corpo e o espírito, a privação destas comodidades (…) tornou-se muito mais cruel do que a posse era suave e ficava-se infeliz por as perder, sem se ser feliz por as possuir.”

Para Ted, é possível convencer as pessoas se tivermos uma doutrina que nos incite a um ideal positivo, gerando apoio e entusiasmo: não basta ser contra o mundo tecnológico, é preciso ter uma visão alternativa. E o trabalho está facilitado porque esse ideal positivo já existe: “os ambientalistas radicais JÁ têm uma doutrina que exalta [a Natureza] e que se opõe à tecnologia”. É apenas necessário um cuidado: os revolucionários devem evitar o perigo do esquerdismo.

Mas o que quer Kaczynski dizer com esquerdismo?

2 O esquerdismo como tipo psicológico

Entre nós, o termo esquerdismo, quase sempre utilizado com sentido depreciativo, tende a remeter para uma esquerda radical, profundamente ideológica, pouco dada a compromissos – ou seja, corresponde ao sentido consagrado por Lenine em A Doença Infantil do «Esquerdismo» no Comunismo.

Lenine escreve este texto com o objetivo de clarificar aquelas que devem ser as estratégias e as táticas do verdadeiro comunismo e critica os movimentos mais à esquerda, que, reivindicando maior pureza política, recusam qualquer tipo de compromisso que os desvie do objetivo revolucionário final. Consagrando o lado pragmático do comunismo, Lenine afirma: “negar os compromissos «por princípio», negar a admissibilidade dos compromissos em geral, quaisquer que sejam, é uma criancice que até é difícil de levar a sério.”

Em sentido contrário, um verdadeiro comunista sabe que “[h]á compromissos e compromissos. É preciso saber analisar a situação e as condições concretas de cada compromisso ou de cada variedade de compromissos.” Isto significa que, por vezes, é necessário e útil fazer acordos com imperialistas ou apoiar partidos inimigos para derrubar outros e criar tensões insanáveis dentro do sistema; e quase sempre é necessário pactuar com a instituição parlamentar burguesa até que as condições para a revolução estejam garantidas. Essa é, aliás, a responsabilidade da vanguarda do proletariado:

“a participação nas eleições parlamentares e na luta na tribuna parlamentar é obrigatória para o partido do proletariado revolucionário precisamente para educar as camadas atrasadas da sua própria classe, precisamente para despertar e instruir a massa rural não desenvolvida, embrutecida e ignorante.”

Podemos chamar a este esquerdismo “esquerdismo político” e é um conceito útil para compreender a nossa história recente. Mas não é a isto que Ted Kaczynski se refere. Quando fala do perigo do esquerdismo, Ted convoca o esquerdismo como tipo psicológico, considerando que se trata de uma das muitas manifestações de insanidade que a sociedade tecnológica gerou.

Podemos identificar este tipo de pessoas através de duas tendências psicológicas: apresentam “sentimentos de inferioridade” (interpretando como ofensivo tudo o que é dito sobre elas ou o grupo com o qual se identificam, revelando baixa autoestima, tendências depressivas, culpa, auto-ódio, etc.) e “hipersocialização” (não conseguem experimentar sem culpa pensamentos ou sentimentos contrários à moral aceite e vivem acorrentados a essa moral que lhes é imposta).

Kaczynski acautela-se quanto ao perigo das generalizações, mas refere que este tipo psicológico se encontra tendencialmente nas pessoas que pertencem a minorias ou se identificam com elas (aquilo que hoje designaríamos como aqueles que se envolvem em políticas identitárias ou woke), e traduz-se num determinado tipo de filosofia:

“os filósofos esquerdistas modernos não são simplesmente racionalistas de cabeça fria analisando sistematicamente os alicerces do conhecimento. Estão profundamente envolvidos emocionalmente no seu ataque à verdade e à realidade. Atacam estes conceitos por causa das suas próprias necessidades psicológicas. Por um lado, o seu ataque é uma válvula de escape para a hostilidade, e, na medida em que é bem-sucedido, satisfaz a sua vontade de poder.”

Permitam-me clarificar o argumento: Kaczynski não está aqui a falar da tradicional dicotomia esquerda/direita; não está a atacar a esquerda por querer defender a direita (tem, aliás, muitos problemas com os conservadores, por apoiarem geralmente o sistema tecnológico). O que Ted está a defender é que a sociedade tecnológica gera vários problemas mentais e que algumas pessoas traduzem isso em termos políticos, pretendendo satisfazer a sua necessidade de poder através da imposição da sua moralidade aos outros. É um esquerdismo psicológico, que não corresponde necessariamente à divisão clássica entre esquerda e direita, e é identificável pela seguinte atitude: “Se a nossa sociedade não tivesse quaisquer problemas, os esquerdistas teriam de os INVENTAR de modo a fornecer-lhes um pretexto para fazerem algazarra.”

Terá Kaczynski razão?

3 Política da depressão

Em dezembro de 2022, Gimbrone, Bates, Prins, & Keyes publicaram um artigo intitulado “The politics of depression: Diverging trends in internalizing symptoms among US adolescents by political beliefs”, com dados que indicam uma disparidade em termos de saúde mental entre adolescentes com diferentes crenças políticas, pelo que seria possível afirmar que as perspetivas ideológicas através das quais os adolescentes veem o clima político afetam de modo diferente o seu bem-estar mental.

E que relação é essa entre visão política e saúde mental? Este estudo revela que os adolescentes que se identificam como de esquerda (liberals) apresentam níveis mais elevados de depressão do que os adolescentes que se identificam como de direita (conservatives); e essa diferença é mais acentuada no caso das raparigas de esquerda (grupo que apresenta as tendências depressivas mais elevadas).

Na verdade, estudos anteriores já tinham revelado esta relação, com uma tendência de satisfação com a vida consistentemente superior entre os conservatives, desde a década de 1970. Alguns autores aproveitam estes dados para fazer a defesa do conservadorismo: os conservadores são tendencialmente mais religiosos e com famílias mais estáveis e presentes – dois elementos que têm sido apontados como relevantes para vidas mais felizes; e como os liberals vivem tendencialmente em ambientes sociais mais individualistas e desestruturados, estariam mais suscetíveis a desenvolver problemas de saúde mental.

Mas a política da última década, e em particular o seu impacto nos mais jovens, tem levantado outro tipo de reflexões. Gimbrone, Bates, Prins, & Keyes defendem que os adolescentes de esquerda assistiram a um crescimento do ambiente político de direita nos últimos anos e que isso os levou a um sentimento de alienação e frustração perante a hegemonia das posições contrárias. Esta interpretação, no entanto, parece enviesada. Como o jornalista Matthew Yglesias nota, os liberals têm influenciado de forma consistente a agenda política, tornando conceitos como racismo estrutural, sexismo generalizado e desigualdade socioeconómica galopante inevitáveis no discurso político.

E é precisamente aí que parece residir o problema: se insistirmos que vivemos no pior dos mundos, que os problemas das nossas sociedades são estruturais e incorrigíveis e que tudo o que nos acontece é resultado de injustiças e nunca responsabilidade nossa, estamos a abrir o caminho para a depressão. E essa condição depressiva leva-nos, por sua vez, a interpretar com pessimismo a realidade, agravando a tendência para a catastrofização (uma das distorções cognitivas mais relevantes).

Uma vida mental mais saudável parece implicar o abandono daquele tipo de vocabulário e as ferramentas de análise política que se tornaram tão populares com as políticas identitárias. Como diz a jornalista Jill Filipovic,

Quase tudo o que os investigadores entendem sobre resiliência e bem-estar mental sugere que as pessoas que sentem que são os principais arquitetos da sua própria vida – para misturar metáforas, que são os capitães do seu próprio navio e não que estão simplesmente a ser atirados de um lado para o outro por um oceano incontrolável – estão muito melhor do que as pessoas cuja posição-padrão é a vitimização, a mágoa e a sensação de que a vida simplesmente lhes acontece e não têm qualquer controlo sobre a sua resposta.

Trata-se, na verdade, de uma lição antiga, como nota Jonathan Haidt no livro em que procura conciliar os contributos da sabedoria antiga com a ciência moderna:

“A felicidade vem de dentro de nós e não pode alcançar-se fazendo o mundo conformar-se aos nossos desejos.”

4 O esquerdismo como tipo psicológico em Portugal

O cenário que tracei relaciona-se fundamentalmente com o mundo anglo-americano e não pode ser transposto de forma simples e imediata para o nosso contexto (por um lado, a divisão política em Portugal é muito menos acentuada; por outro, temos uma base familiar mais forte e uma sociedade menos tecnológica).

Ainda assim, devemos ter em consideração o modo acelerado como temos vindo a aceitar o discurso identitário, introduzido pelos ativistas de forma consciente, mas adotado por muitos de forma irrefletida: é o vocabulário das injustiças estruturais (desde racismo ao patriarcado) e da interseccionalidade (mais sobre isto num texto próximo), que é fundamental para a criação de uma cultura de vitimização; são as noções de sexo atribuído à nascença e autodeterminação, que põem em causa qualquer base de diálogo factual; é a política da depressão, particularmente evidente na discussão ecológica, que deixou de ser um tema político para ser tratado como problema de saúde mental, como este artigo do Público sobre ansiedade climática demonstra.

Mas é possível que a especificidade do nosso esquerdismo como tipo psicológico passe, e de modo bastante transversal, por uma atitude de dependência face ao estado, esperando encontrar nele a resolução de todos os problemas, e com pouca disposição para assumir responsabilidades pessoais. E o problema desta atitude é remeter-nos para uma postura de passividade que põe em causa o aspeto mais decisivo da saúde mental: a sensação de autonomia e controlo.