É a frase mais conhecida de Salgueiro Maia e reflete a forma ligeiramente fatalista e profundamente desiludida como os portugueses olham para as recorrentes fragilidades do país: “Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou”.

Passaram-se muitas décadas, mas, por mais boa vontade que tenhamos, somos forçados a reconhecer que o estado a que isto chegou não é exatamente brilhante. Em especial quando concluímos, como aconteceu nesta semana deprimente, que, inacreditavelmente, há áreas fundamentais do Estado em que estamos pior do que estávamos durante a pandemia, que foi o evento mais disruptivo desta geração.

Na Justiça, por exemplo. Os números mostram, com inequívoca clareza, que a greve dos funcionários judiciais, que se tem prolongado com incompreensível discrição, já provocou mais adiamentos do que aqueles que aconteceram no período da pandemia: estão em causa cinco milhões — atenção: cinco milhões — de atos processuais e 60 mil diligências que ficaram por fazer.

Nos hospitais, idem aspas. Ficámos a saber por estes dias que, no ano passado, o número de utentes em lista de espera aumentou e que o número de utentes sem médico de família também. Segundo o Conselho das Finanças Públicas, 2022 “caracterizou-se pela agudização de determinados constrangimentos já patentes no período pré-pandemia”. E, agora, foi anunciado esta sexta-feira, vem aí uma greve geral de médicos, a que se soma uma greve regional, a que se adiciona uma greve às horas extraordinárias nos cuidados de saúde primários, a que acresce uma greve à produção adicional nos hospitais.

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Nas escolas, há especialistas a avisar que as greves, protestos e paralisações dos professores tiveram consequências piores do que as da pandemia porque, desta vez, não existe uma mobilização generalizada dos cidadãos para arranjar soluções que diminuam os efeitos das paragens na aprendizagem.

Com uma paciência teimosa e inamovível, o governo faz de conta que não vê nada disto. O objetivo supremo de António Costa é convencer o país e a Europa de que não existe contestação na sociedade portuguesa. Porque, na sua cabeça, se não existe contestação, é porque não existe conflito; e, se não existe conflito, é porque não existem problemas.

Havendo greves com efeitos pesados nas três áreas mais sensíveis do Estado — Justiça, Saúde e Educação —, um governo que não simulasse sonambulismo teria duas formas possíveis de atuar para resolver os problemas.

Uma hipótese seria ceder. O primeiro-ministro podia aumentar significativamente os salários dos funcionários judiciais; podia aplicar uma pequena fortuna a criar as condições para os médicos quererem trabalhar no SNS; e podia entregar aos professores a contagem do tempo de serviço que reivindicam. Mas António Costa antecipa as consequências de uma distribuição massiva de dinheiro. Conhecendo a história recente do PS, sabe que iria de cedência em cedência até à troika final.

Outra hipótese seria combater. Um governo de maioria absoluta cercado por sindicatos poderosos poderia explicar aos eleitores as razões para a resistência aos seus interesses particulares e poderia criar dificuldades àqueles que o pretendem fazer vergar. Mas António Costa tem horror a isso porque prospera com uma imagem política que o apresenta como o homem dos consensos que, para usar as metáforas da praxe, derruba muros e constrói pontes. Ele é o anti-Cavaco e o anti-Passos. Combater os sindicatos levaria à destruição dessa imagem propagandística — e isso, para o primeiro-ministro, é impensável. Por duas razões. Primeiro, porque é ela que tem sustentado sempre o discurso de legitimação do governo, mesmo quando faltaram os votos (em 2015) ou quando faltaram os apoios (em 2021, com o fim da geringonça). Sem essa imagem, António Costa perde o seu propósito político. A segunda razão que leva o primeiro-ministro a querer fazer de conta que o país não tem conflitos é porque essa é a imagem que lhe dá força e poder “na Europa”. António Costa é considerado para um cargo europeu porque é socialista e o grupo dos socialistas tem direito a cargos — mas também porque é visto como o homem dos consensos, que tanto fala com o esquerdista Alexis Tsipras como com o nacionalista Viktor Orbán.

Por tudo isto, António Costa precisa de poder dizer que reina a paz e a tranquilidade no país, mesmo que essa tranquilidade e essa paz sejam uma fantasia. Os professores não ensinam, os médicos não curam e os oficiais de justiça não trabalham, mas o PS governa — e isso, no fundo, é a única coisa que realmente interessa.