Tudo começou, como sempre, com intenções pias. Beatamente horrorizado com o facto de todos os anos serem “deitados ao lixo e guilhotinados milhares, milhões de livros”, e virtuosamente empenhado em exibir a sua santa preocupação com a “sustentabilidade ambiental”, o governo decidiu que qualquer aluno que estivesse a frequentar o ensino obrigatório teria acesso a manuais escolares gratuitos. Havia uma pequena, minúscula, condição: para receberem os livros, tinham de entregar os do ano anterior num estado de conservação suficientemente razoável para poderem ser reutilizados.

Em tese, é uma óptima ideia. Na prática, é uma ideia inaplicável. Até por um motivo inultrapassável: é que há manuais escolares que pedem, sugerem ou exigem que os alunos recortem páginas, dobrem páginas ou pintem páginas com canetas de cores. Ou seja: há manuais escolares que, pela sua própria natureza, não são reutilizáveis.

Isto, só por si, já era mau. O que se seguiu foi pior. Como é hábito e tradição, o Estado português entrou em modo curto-circuito. Primeiro, em junho do ano passado — ou seja, no início do ano letivo —, um organismo do Ministério da Educação deu a orientação de que os manuais do 1.º ciclo não precisavam de ser devolvidos para que os pais tivessem livros gratuitos no ano seguinte. Depois, há cerca de um mês — ou seja, depois do final do ano letivo —, uma nova orientação veio decretar exatamente o contrário: afinal, era mesmo preciso devolver os manuais prontos a serem reutilizados. A seguir — quando, perante a inamovibilidade da burocracia, vários pais já tinham comprado os manuais com o seu dinheiro —, o Ministério da Educação deu uma nova reviravolta, dizendo que as famílias teriam direito aos manuais mesmo quando não fosse possível a reutilização dos livros antigos, desde que essa impossibilidade decorresse do seu “uso normal”. E finalmente, há dias, em entrevista à Visão, João Costa terminou o círculo completo. Depois de “avaliar” as “taxas de reutilização”, o ministro “viu”, como quem presencia um milagre do Altíssimo, que esse valor era “baixíssimo”. Perante essa revelação, apercebeu-se, seguramente com abundância de lamúria, que “não valia a pena”. E segredou um episódio de bastidores aos jornalistas da revista: “Dentro do governo, já combinámos que vamos deixar de reutilizar os manuais do primeiro ciclo”.

Está, portanto, “combinado”: o Governo criou uma política que assentava em premissas impossíveis de cumprir; usando o seu infinito arbítrio, descansou os pais com a garantia de que não precisavam de fazer o que a lei previa; recorrendo ao seu poder discricionário, esperou pelo final do ano para ignorar as suas próprias palavras e impor às famílias o que nunca lhes deveria ter sido imposto; e, depois de um novo período de confusão e caos, fazendo de conta que esta é a forma normal de tomar decisões, reconheceu, de passagem numa entrevista, aquilo que toda a gente sabia desde o início que era impossível de fazer e deixou cair uma exigência que atirou as famílias para o exato local onde a impotência e a angústia se cruzam com a frustração.

O Governo foi do “sim” ao “não” e do “talvez” ao “nunca mais” com a desenvoltura e a leveza de quem não tem que dar explicações nem prestar contas. Somos governados assim e, honestamente, não vale a pena esperar coisa diferente.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR