1 Semana farta. Fartura dupla: intramuros, na afronta e no ineditismo; fora de portas, abundante na coragem política.

Comecemos por cá: os portugueses, goste-se deles ou não, e às vezes, não, querem casa. Em nome próprio. Sempre foi assim. Mal podem, compram-na. Fazem contas, sacrifícios, economias, privações, para adquiri-la. Levam os melhores anos da sua vida a pensar como cumprir um sonho que nasceu com eles. Vão para fora para pagar uma habitação cá dentro. São em muito maior número proprietários de casa própria do que António Costa e os seus poucos esclarecidos pares e os seus nada esclarecidos conselheiros ,deviam saber. Ora é justamente esse número – ele sim, esclarecedor desta relação do português com a propriedade – que deveria tiver acendido uma luz vermelha ao Executivo. O governo ao desconhecer essa eloquente cifra de pequenos e médios proprietários começa por nos desconhecer a nós. Percebe mal quem somos. Não é particularmente interpelado pela “forma mentis, a idiossincrasia as características que explicam – definem – o povo português, ou só lhe presta atenção em época de frutos eleitorais. E é nesse sentido que se está também perante uma certa forma de afronta: ninguém sabia quantos milhares e milhares de proprietários de habitação própria – e orgulhosos dessa “conquista” – há em Portugal? Dezenas de ministros, secretários de Estado, conselheiros e tuti quanti, não sabiam bem?

Não sabendo ou até sabendo mas sendo-lhes totalmente indiferente saber, (viva o Estado que é do PS!), conseguiram um feito extraordinário: ainda antes de nos indignarem com tão despropositadas intenções, conseguiram primeiro espantar-nos: foi a pasmosa dimensão do erro do primeiro-ministro que trouxe atrelada a si a indignação por este inédito assalto socialista à propriedade privada.

2 A verdade é que também me surpreendeu o imediato eco da recusa generalizada a este plano governamental. Foi visível, audível, de carne e osso. No Portugal (aparentemente) conformado e encalhado em si mesmo em que se vive nos últimos anos, houve um sinal expressivo de vitalidade — afinal estamos vivos. Um sobressalto que ultrapassou em muito a meia dúzia de intervenientes avulso que praticam a cidadania, um aqui, outro ali, um hoje, outro semanas depois; ou a dos cronistas, editorialistas ou comentadores responsáveis, preocupados em sinalizar a sua perplexidade face à inoperância, ao erro, ao abuso de poder, ao indigno. E pouco mais.

Foi melhor que nada e mais vale um sobressalto na mão do que muitos a voarem (e nem sequer são muitos os que ao menos voam).

3 Quantas vezes aquele monocórdico e tão “mais do mesmo” discurso que Putin proferiu esta terça feira, terá sido reavaliado, repensado e reescrito após a extraordinária viagem de Joe Biden a Kiev? A intenção de por umas horas, fazer de Moscovo o palco do mundo não só lhe foi roubada por Biden como o pré-aviso norte-americano a Moscovo da deslocação a Kiev exibiu a força e a autoridade que não veem só das armas e do poderio militar.

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Foi uma tragédia para Putin, um choque político sem dimensão para a plateia russa cloroformizada que o ouvia; foi uma formidável antecipação política de Joe Biden – antecipando de surpresa a sua saída de Washington para a Polónia para ir a Kiev de comboio, secundarizando assim, quando não anulando a festa celebratória que Putin arquitectara para celebrar com demência e jubilo, a passagem de um ano sobre a invasão da Ucrânia. Uma invasão com assinatura; foi um trabalho admirável de organização sem mácula dos diversos “compartimentos” da equipa do Presidente norte americano e um esforço que se imagina complexo do líder ucraniano, dadas as circunstancias de vida no seu país. Dirão alguns que foi publicitário antes do mais (Ah bom?). Julgo pelo contrário que embora nada possa prevenir ou garantir, que se passou foi um assomo de alento para um povo diariamente massacrado e um consolo para o mundo ocidental e quem sabe para que outros mundos: aquelas imagens deixaram cair um pouco de luz nos trágicos despojos da guerra, foram um raio de sol nas águas geladas de muita coisa — incerteza, arbitrariedade, crueldade, impotência, demência. Coragem política também é isto, isto que testemunhámos ao vivo nesta invulgar quadra carnavalesca porque tudo foi o contrário de uma mascarada ou um disfarce, ou um desfile. Se os políticos actuais percebessem o que vale a coragem política e o poder que pode ter a sua exibição desta forma tão séria, tão sóbria, tão simples, os políticos eram simplesmente melhores do que são.

Exagero? O tom é gongórico? Talvez. Mas talvez o momento o reclame.

Quem é que há um ano atribuiria um gesto desta envergadura a Joe Biden, na defesa dos valores ocidentais e da nossa ameaçada civilização ? Um velho que não chegaria ao fim do mandato mas que afinal fez (quase) tudo certo ate hoje; quem esperaria esta tempera, esta fibra de resistente, a qualidade de liderança, a capacidade de falar todos os dias ao seu povo desde há ano, sem falha nem desalento? Não era Zelensky apenas um mero entertainer de café de um país desclassificado?

Não sei o fim da história e temo por ela todos os dias. Mas sei que o mundo e eu nos enganamos sobre aqueles dois cavalheiros.