Por mais que uma pessoa, num esforço desesperado para entender a alma humana, se tente habituar, a verdade é que a cegueira da esquerda consegue sempre arranjar uma forma de nos surpreender. Por exemplo: o tempo passa, os anos passam, as décadas passam e o PS e a restante esquerda nativa continuam a não conseguir perceber porque é que o país ainda ouve Aníbal Cavaco Silva, a quem gostam de chamar, com indisfarçável desprezo, “a múmia”.

Esta semana, a esquerda voltou a entrar em hiperventilação com a presença de Cavaco Silva no Conselho de Estado e com o anúncio de que o ex-primeiro-ministro se prepara para publicar um livro sobre “a arte de governar”.

Há uma razão óbvia para esta dificuldade da esquerda com Cavaco Silva: é que ele ganhou quatro maiorias absolutas (duas em legislativas e duas em presidenciais) com votos de socialistas e até, imagine-se o desplante, de comunistas. E, isso, a esquerda, que em Portugal gosta pouco de perder o controlo sobre o eleitorado que julga ser seu por direito, não perdoa.

Mas, para quem quer conhecer o mundo onde vive, o mais importante não é constatar que estes eleitores de esquerda votaram em Cavaco e admiraram Cavaco. O mais importante é perceber porque é que isso aconteceu. E a resposta está nas duas palavras que provocam mais urticária a António Costa: “reformas estruturais”. Ficou célebre a reveladora entrevista em que o dr. Costa disse a frase fatal: “Essa expressão ‘reformas estruturais’ arrepia-me e, aliás, qualquer cidadão normal fica logo alérgico”.

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Não é bem assim. Aliás, não é nada assim. Antes deste longo período de governação socialista, que começou com António Guterres, passou por José Sócrates e está agora em António Costa, as “reformas estruturais” não “arrepiavam” o “cidadão normal” — inspiravam-no. Agora, como se constata com tristeza e desânimo, a ambição é reduzida. Na mesma entrevista, o primeiro-ministro afirmava: “Temos agora que ter capacidade de continuar”. No tempo de Cavaco Silva, não se pretendia simplesmente “continuar”. Pretendia-se romper. Não vale a pena declamar a longa litania de medidas cavaquistas que cortaram com o estado de coisas que saiu do processo revolucionário e levou o país a um impasse de pobreza e atraso. Mas talvez não seja ocioso falar brevemente, a título de exemplo, de uma “reforma estrutural” especialmente simbólica, tendo em conta que este texto está a ser publicado num jornal.

Convém lembrar: até ao governo de Cavaco Silva, o Estado português era o ufano proprietário de um conjunto alargado de jornais. A sul, era dono do “Diário Popular”, da “Capital” e do “Diário de Notícias”; a norte, era dono do “Jornal de Notícias” e do “Comércio do Porto”; e, claro, havia ainda o futebol — como não podia deixar de ser, o Estado era dono do “Record”. Entre 1988 e 1991, Cavaco acabou com este exotismo e privatizou jornais matutinos, vespertinos e desportivos.

Não era evidente e não foi fácil. Na sua autobiografia, Cavaco Silva lembra e sublinha que foi “necessária muita vontade política para vencer os preconceitos e tabus” do PS, do PCP e também do seu PSD, onde “não era unânime a ideia de afastar o Estado da propriedade dos órgãos de comunicação social”. Ao escrever isto, Cavaco estava a esquecer-se do CDS.

Em junho de 1991, o deputado centrista Narana Coissoró levantou-se na Assembleia da República para atacar a decisão de tirar o DN e o JN da pata protectora do Estado para os entregar à temível iniciativa privada: “As recentes privatizações de dois jornais de grande circulação, respectivamente no norte e no sul do País, vieram levantar a suspeita que desde há muito se temia de concentração dos principais diários passarem para o controlo de grupos financeiros não suficientemente conhecidos do grande público”. Um deputado socialista chamado António Guterres levantou a voz: “Muito bem!”. Entusiasmado por este incentivo vindo da esquerda, Narana prosseguiu com a insinuação de que os dois jornais recém-privatizados estariam “a descambar no culto da personalidade e da adulação do poder”.

Cavaco Silva teve de aturar tudo isto com santa paciência. Era assim o país político em 1991. E quem queria escapar a este pantanoso atraso sabia que podia apenas contar com Cavaco. Das obras públicas aos impostos, houve muitas outras “reformas estruturais” que tornaram o país mais moderno e (peço desculpa) mais rico.

O primeiro-ministro Cavaco Silva cometeu muitos erros, mas o que ficou, trinta anos depois, foi isto: quando o ouvem, os eleitores lembram-se que é possível fazer mais e é possível fazer melhor. Que o PS não perceba isso é apenas mais uma prova de que, em todo este tempo, as coisas não mudaram assim tanto.