Esta semana, mais uma vez, o PS passou os dias a falar sobre o Chega. Do novo secretário-geral ao último funcionário do Largo do Rato, todos os socialistas acordam e deitam-se a perorar sobre o Chega, a assegurar que a IL é igual ao Chega, a jurar que nada distingue o PSD do Chega e a garantir, com voz melíflua, que a extrema-direita começa no exato ponto onde o PS acaba.

Obviamente, é tudo uma estratégia eleitoral. E nem sequer se distingue por ser original. Nos anos 80, François Mitterrand fez a mesmíssima coisa em França. Antes de chegar ao poder, o Presidente francês tinha prometido aos mais próximos que, quando entrasse no Palácio do Eliseu, iria “pendurar uma panela na direita”. A “panela” chamava-se Frente Nacional e o ato de o “pendurar na direita” foi feito em dois movimentos.

Primeiro, antes das eleições europeias de 1984, Mitterrand deu ordens ao seu ministro das Comunicações para falar com os donos dos vários canais de televisão e estações de rádio. O objetivo era fazer-lhes chegar a mensagem de que, “em nome da democracia”, deviam acabar com a linha vermelha que impedia Jean-Marie Le Pen de aparecer no ar. O Presidente francês entendia que o líder da extrema-direita devia ter a possibilidade de explicar as suas ideias no horário nobre. Sempre deferentes ao poder político, as televisões e as rádios acolheram a sugestão do Eliseu. Nas europeias, a Frente Nacional passou de menos de 1% para 11%.

O segundo movimento de Mitterrand foi feito à vista de todos. Em 1985, o Presidente comunicou à nação que chegara a altura de mudar o sistema eleitoral para as legislativas. A França deixou de ter um sistema maioritário, em que o partido mais votado em cada círculo ganha todos os mandatos, e passou a ter um sistema proporcional, que espalha os mandatos por diferentes partidos. Jacques Chirac, um dos líderes da direita tradicional, denunciou imediatamente a manobra de Mitterrand: “Toda esta operação tem o objetivo de fomentar o crescimento da Frente Nacional”. De facto, tinha esse objetivo. E, de facto, conseguiu esse objetivo. Com os deputados da direita divididos, o PS francês ficou com as mãos livres. Os especialistas que olharam para a distribuição de voto em França concluíram que, sem esta mudança no sistema eleitoral, e sem o crescimento da Frente Nacional, o partido de Mitterrand teria perdido todas as legislativas nos anos 90.

Depois de promover o partido de Le Pen, os socialistas franceses criaram uma enorme nuvem a que chamaram “a direita”. Nas eleições de 1986, com histerismo e sem vergonha, o slogan de campanha do PS foi, juro, “Socorro! A direita vai voltar!”. Mais uma vez, resultou.

Em 2015, quando o PS de António Costa tomou o poder, o Chega tinha zero deputados. Em 2019, ganhou um. Em 2022, passou para doze. E neste momento, em 2023, as sondagens mais optimistas dão-lhe um resultado acima de 15%, o que lhe permitiria ter um grupo parlamentar gigantesco. António Costa, primeiro, e Pedro Nuno Santos, depois, querem pendurar a cada vez maior panela do Chega no pescoço do PSD para tornar impossível qualquer governo à direita. Dias antes das eleições de 1986, quando se preparava para mudar a política francesa para sempre, François Mitterrand disse a Henry Kissinger, com os olhos a brilhar: “Não se preocupe. O jogo que começa agora vai ser completamente novo. Vão acontecer as coisas mais inesperadas”. Na altura, Mitterrand e Kissinger não se preocuparam. Agora, António Costa e Pedro Nuno Santos, pelos vistos, também não. Mas, se a direita tradicional não se mexer, o que aí vem não vai ser bonito.

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