Foi com perplexidade que li o artigo de opinião publicado no jornal Observador pelo ainda presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos e actual candidato a Bastonário Dr. Alexandre Valentim Lourenço.

Procurando responder à pergunta do momento (como fixar médicos no S N S ?) ele assume no seu texto um conjunto de posições que, contrariamente ao que conclui, não vão contribuir para a fixação de médicos ou até mesmo para a própria sobrevivência do S N S. Vejamos porquê.

O contexto geral em que o Dr. Alexandre Lourenço baseia o seu artigo revela uma visão muito negativa de algumas das áreas do S N S, como sejam as carreiras médicas, “Na minha opinião já não há carreira médica”, a qualidade da formação médica pós graduada (reivindicando internatos com qualidade e concluindo que a formação não pode terminar aos 31 anos), a perda da autonomia e da liderança médica e o escasso acesso à inovação.

É uma postura surpreendente, por vir de alguém que integrou um sindicato que negociou e aprovou o actual regime de carreiras médicas, ainda em vigor, e que, por via do seu actual cargo na Ordem dos Médicos, teve a possibilidade de intervir em várias das insuficiências que aponta. E que, em vez de analisar objectivamente as causas dos problemas que enumera, usa uma linha argumentativa em que confunde conceitos e faz propostas que dividem os médicos e que podem mesmo dificultar o acesso dos doentes a cuidados de saúde de qualidade, caso fossem aplicadas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Recordemos que foi na Ordem dos Médicos, há 61 anos, que um grupo de jovens médicos elaborou e publicou um documento estruturante para a Medicina em Portugal chamado Relatório das Carreiras Médicas. A divulgação do documento custou aos seus autores múltiplas perseguições e à Ordem a demissão dos seus corpos directivos, tendo ficado sob tutela administrativa até ao 25 de Abril de 1974. Vale a pena revisitá-lo, uma vez que muitas das suas propostas permanecem actuais.

Assim, de acordo com o referido Relatório, as Carreiras Médicas têm, entre outros objectivos centrais, “a elevação profissional dos médicos, mediante uma aprendizagem prolongada, conforme as exigências da medicina moderna”, sendo fundamental “conjugar as necessidades sanitárias da população do País, sobretudo as das regiões mais desprotegidas, com as aspirações da classe médica”, para concluir que “tudo deverá convergir para a realização desta finalidade suprema: O Serviço de Saúde deve garantir a qualquer indivíduo, no momento necessário, os cuidados médicos de que precisa”.

Estes são os princípios intemporais que nortearam a construção das Carreiras Médicas e que, ao contrário do que afirma o Dr. Alexandre Lourenço, não acabaram, mas têm vindo a ser adulteradas pelos sucessivos ataques que lhe têm sido infligidos pelos inimigos do S N S.

As Carreiras Médicas são o contexto organizativo em que os jovens médicos são ensinados primeiro a saber ver doentes, depois a conhecer e utilizar as técnicas disponíveis para os diagnosticar e tratar e por fim obrigados a prestar provas de que adquiriram as competências e o conhecimento necessários à sua progressão. São aquilo que permite a diferenciação dos médicos e não a sua consequência, como parece inferir-se do artigo. Esta diferenciação não se obtém com a mera frequência de fellowships ou a maior ou menor exposição às inovações tecnológicas, antes advém do seu enquadramento num sistema estruturado e organizado de exercício da Medicina.

É esta organização em equipas multidisciplinares onde são partilhados múltiplos saberes e competências, própria das instituições do S N S onde existem Carreiras Médicas, que garante os “internatos de qualidade” e que tem conseguido o feito de manter a elevada qualidade dos médicos aí formados e de garantir aos doentes o acesso aos cuidados de que necessitam sem discriminação pelo código postal.

Por isso, não posso aceitar que um médico com os antecedentes e as responsabilidades do Dr. Alexandre Lourenço venha propor que colegas seus com o mesmo grau e posição na carreira sejam discriminados em função de supostas diferenciações que adquiriram ou das tarefas que desempenham. Não é legítimo afirmar que uns são muito diferenciados, salvam vidas e por isso têm que ser melhor retribuídos, e que outros, que executam tarefas que diz serem menos diferenciadas, devem ser desvalorizados.

Não partilho esta sua visão, que classifico de universitariocêntrica e que muitos colegas considerarão ofensiva, do que é a diferenciação médica ou a prática de uma Medicina de qualidade. Todos os médicos salvam vidas ou contribuem para tal todos os dias, na justa medida das competências que adquiriram e do treino que realizaram. E é inútil recorrer ao chavão da moda (a flexibilidade) para tentar fundamentar a ideia de que o modelo tecnocrático da prática médica que tão claramente enunciou vai ressuscitar as carreiras médicas, porque a sua necessária renovação só poderá ocorrer quando se retomar a matriz original em que foram pensadas e criadas, sem interferências abusivas ou incompetentes.

Tem o Dr. Alexandre Lourenço razão quanto à perda de liderança e de autonomia dos médicos. Apenas é omisso na identificação das suas causas, que são a partidarização dos cargos de gestão das instituições do S N S e a escolha, por parte destes órgãos, dos responsáveis clínicos das mesmas, bem como a consentida preponderância de gestores e administradores sobre os decisores clínicos.

Esta realidade, caracterizada pelo subfinanciamento crónico das instituições do S N S e pelas deficiências da sua gestão, criou sucessivas dificuldades à sua organização e desenvolvimento e conduziu a uma menor eficácia na utilização dos recursos disponíveis, à degradação das instalações e equipamentos e às actuais más condições de trabalho para os médicos e de acolhimento para os doentes. A par da miserável retribuição que auferem, são estas as razões pelas quais o S N S não consegue reter os seus médicos e o que explica que os privados consigam atrair estes profissionais altamente qualificados, formados e diferenciados no S N S, que recrutam sem partilhar os custos inerentes à sua formação.

E a forma como elogia a capacidade dos privados em investir em tecnologia de ponta esquece a lógica diferente deste investimento, que se destina a quem tem dinheiro para pagar a sua utilização, deixando para o S N S os restantes doentes, os mais complexos e mais consumidores de recursos.

Concordando com a conclusão do Dr. Alexandre Lourenço de que é necessário defender e repor a dignidade e o prestígio das Carreiras Médicas (afinal reconhece que existem), direi que ela parece estar em contradição com os postulados que defendeu, e que estes objectivos devem ser uma preocupação não apenas da cúpula política da Saúde, mas de todos os actores nesta área.