No dia 13 de fevereiro fomos confrontados, novamente, com a pior das realidades – os abusos sexuais cometidos contra menores, durante décadas por membros da Igreja Católica.

Recordo que este não é o primeiro escândalo do género em Portugal, tivemos, ainda no tempo do Estado Novo o caso Ballet Rose e, já em democracia e há apenas 20 anos, o caso Casa Pia. Num e noutro caso, o horror do que veio a público deveria ter sido suficiente para que lutássemos por um enquadramento jurídico que garantisse, às vítimas destes crimes, o que de mais fundamental uma sociedade justa e civilizada deve assegurar: justiça! Se no primeiro caso, o Ballet Rose, não se poderia esperar muito de uma ditadura bafienta e cujos arguidos eram parte integrante da sua própria elite, já com o caso Casa Pia deveríamos ter feito muito mais. Quando o escândalo rebentou, quando se conheceram os inúmeros crimes sofridos pelas crianças que se encontravam à responsabilidade da Casa Pia, nós, enquanto indivíduos e sociedade, deveríamos ter criado uma cultura de prevenção e denúncia deste tipo de crimes e exigido à classe política uma melhor adequação das nossas leis, civis e penais, assim como um melhor funcionamento do nosso sistema judiciário, para que todos estes processos fossem mais ágeis e, principalmente, para que dessem maior confiança e proteção às vítimas.

Após os sentimentos de vergonha, de repulsa e de revolta, sentidos para com os crimes descritos pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, é o momento de lamentar o silêncio dos inocentes. Temos de lamentar o silêncio dos inocentes que, agora, decidiram acabar com ele e que, com muita coragem, denunciaram o que sofreram às mãos dos homens que usaram o nome de Deus, a fé das suas vítimas e a confiança dos seus pais para a eles chegarem e abusarem de forma abominável. Temos de lamentar o silêncio dos inocentes que, após terem sido sexualmente abusados, denunciaram a situação e a seguir foram calados e punidos por quem os devia ter ajudado, sendo que, muitas vezes, foram incompreendidos pelos seus próprios pais. Temos de lamentar o silêncio dos inocentes que não foram identificados neste relatório, mas que sofreram crimes idênticos aos que agora foram relatados e que carregam consigo uma dor para o resto da vida. A estes inocentes e a todas as vítimas de iguais crimes de abuso sexual que se verificam no nosso país, enquanto pessoa que apenas conheceu o amor e a proteção na infância, não consigo imaginar a vossa dor, mas aqui vos presto toda a minha solidariedade.

Já o silêncio daqueles que calaram as vítimas ou ocultaram os crimes de que tiveram conhecimento, da base ao topo da hierarquia da Igreja Católica, não podemos nunca esquecer. Este silêncio, esta ocultação da realidade, da verdade, e toda a reconhecida falta de proteção ou preocupação para com as vítimas, por parte da Igreja Católica, não pode ser esquecida. Para os casos conhecidos e passíveis de chegarem aos Tribunais, a justiça tem de ser consequente. E a total ineficácia do Estado em prevenir a prática destes crimes, em investigar, acusar, julgar e condenar quem os cometeu, também não pode ser esquecida. Pela dimensão já conhecida (e que será, provavelmente, só o princípio de uma maior lista de casos), pela importância social que a Igreja Católica tem na nossa sociedade e pelo falhanço clamoroso do Estado ao longo de décadas, algo tem de mudar.

Enquanto deputada, parte do poder legislativo, manifesto a minha vontade e disponibilidade para colaborar com todos aqueles que, sem populismos ou medidas inconsequentes que acabarão por resultar em nada, querem trabalhar para garantir uma justiça que seja mais célere e eficaz. Enquanto cidadã, apelo a todos os cidadãos, indivíduos conscientes e preocupados com o bem-estar das nossas crianças, para que façamos a nossa parte. Enquanto pais, familiares, amigos ou membros da comunidade, devemos estar atentos ao que nos rodeia e aos sinais e comportamentos que as nossas crianças nos transmitem quando algo não está bem. Devemos dar-lhes toda a atenção que merecem, escutá-las, protegê-las e apoiá-las, para que tenham a confiança para contar tudo o que de errado se possa passar. Claro que isto também significa que devemos educar as nossas crianças para que saibam e percebam o que não podem permitir, o que não podem aceitar e como devem reagir. Enquanto membros da comunidade escolar, associativa ou paroquial, devemos exigir das instituições a quem confiamos as nossas crianças, toda a atenção e cuidado.

O fim do silêncio dos inocentes começa em nós, nos adultos, que temos o dever especial de proteção para com as nossas crianças e de não aceitar que estas possam enfrentar qualquer tipo de abuso. O silêncio dos inocentes acaba, quando estes, os inocentes, souberem que os abusos não passam impunes, que podem e devem denunciar quem os pratique ou sequer tente e que são ouvidos, respeitados e compreendidos.

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