Passo a passo, com requintes masoquistas e sem piedade (auto-piedade) a Europa suicida-se.
O acordo sobre os refugiados sírios com a Turquia é a vários títulos lamentável. Indispensável para a União Europeia salvar, ou tentar salvar, o que resta da sua política para os refugiados, a liberdade de circulação interna (e Schengen), já para não falar dos compromissos assumidos no plano internacional (Convenção de Genebra de 1951), o acordo acalma as opiniões públicas de alguns países europeus e alivia o fardo dos destinos mais procurados, como a Alemanha e o Reino Unido.

À custa, claro, dos ideais europeus. De uma Europa que sempre foi (pelo menos entre guerras civis…) um porto de abrigo para os desfavorecidos de todos os quadrantes. Da solidariedade e da liberdade de circulação no espaço europeu. Do direito universal, europeu e internacional, de asilo. Dos objectivos do Tratado da União Europeia. Da decência humana.

Citando Jean Quatremer, jornalista do Libération a citar Churchill, “uma nova cortina de ferro abateu-se sobre a Europa”. Será assim?

Este acordo não se limita a separar migrantes económicos de refugiados, o que seria aceitável para além de ser legal (podendo não ser moral). Ele reduz até aos limites do discutível – paredes meias, por isso, com o inaceitável -, o direito de asilo. E se a Comissão proclama a legalidade do acordo com a Turquia – “far-se-á em conformidade total com o direito da União e o direito internacional, excluindo qualquer forma de expulsão colectiva” -, a verdade é que a astúcia jurídica é óbvia, espécie de cauda escondida com gato de fora; o mal-estar instalou-se entre os líderes europeus.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A partir de agora, as pretensões dos refugiados sírios que chegam à Grécia (pretensão de ser considerados refugiados com direito a aceder ao espaço europeu) serão examinadas em centros de acolhimento e registo. Eis como a Comissão explica o procedimento: “cada pedido de asilo será tratado individualmente pelas autoridades gregas conforme à directiva sobre o procedimento de asilo (…) Os migrantes que não peçam asilo ou cujo pedido seja declarado infundado ou inaceitável conforme a dita directiva serão reenviados para a Turquia”. Tudo bem? Nem por isso.

Em primeiro lugar, embora da decisão haja recurso para um juiz (pela primeira vez), os requerentes terão de aguardar a decisão na Grécia, em lugares fixados – os chamados “hotspot”, estando previstos cinco -, sem poder dirigir-se para Norte (leia-se França, Alemanha ou Reino Unido). Além disso o asilo será recusado se a pessoa em causa tiver passado antes por um primeiro país de asilo considerado um “país seguro”. Isto é, um país em que a União considere não haver risco de vida ou perseguição e onde o refugiado possa obter refúgio: um país como, por exemplo, a Turquia; ora considerar a Turquia um país terceiro seguro “é absurdo”, disse a Amnistia Internacional: “muitos refugiados ainda vivem em condições terríveis, alguns foram deportados para a Síria e forças de segurança (turcas) até dispararam sobre sírios que tentaram atravessar a fronteira”. Vem-me à mente uma expressão conhecida: a opção é entre a frigideira e o lume.

Uma coisa é certa, e resumindo: dificilmente os refugiados que chegam às ilhas gregas terão hipótese de obter asilo na Europa do mel e do leite (já foi mais, na verdade).

É certo que a União Europeia se compromete a receber um refugiado da Turquia por cada migrante que este país receba vindo (“devolvido”) da Grécia. Tudo bem então? Nem por isso.
Explica a Comissão europeia que essa admissão far-se-á com base nos acordos europeus de reinstalação de Julho e Setembro de 2015 : “18 mil lugares de reinstalação estão ainda disponíveis”, podendo ser alargados a 54 mil pessoas suplementares; mas se o número de regressos ultrapassar os valores referidos, “o mecanismo será interrompido”. É caso para falar em gota de água. E numa morte anunciada do processo, que tenderá sobretudo a tornar-se numa forma de manter os refugiados sírios afastados do continente europeu.

Trata-se de uma verdadeira externalização do problema dos refugiados. Sobre ela se pronunciou há alguns meses Catherine Teule, da Associação Europeia dos Direitos Humanos: “incapaz de acolher os refugiados, a Europa esforça-se por os tornar invisíveis aos olhos dos europeus”, mantendo-os tão longe quanto possível das fronteiras europeias; contra a externalização pronunciou-se também o Presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz.
Em troca do apoio turco – Turquia que tem hoje já no seu território 3 milhões de refugiados sírios -, a Europa cedeu: abriu um novo dossiê no processo de adesão do país, embora apenas um em vez dos quatro que a Turquia pretendia, por força da oposição de Chipre; aceitou o fim, até final de Junho, do visto obrigatório para cidadãos turcos no acesso ao território europeu; e reforçou em 3 mil milhões de euros a verba destinada a ajudar o governo turco na instalação dos refugiados. Tudo bem? Nem por isso.

Enquanto a Cimeira se preparava, nos dias, semanas e meses anteriores, o regime turco endurecia e o seu presidente Tayyip Erdogan desafiava a Europa: “takeover” sobre o jornal oposicionista Zaman, linha dura aplicada a empresas como o grupo industrial Boydak, ameaça a opositores, repressão crescente das minorias curdas. E os europeus, neste ínterim, fecharam e fecham os olhos aos excessos autoritários turcos em troca do apoio para encerrar o chamado “corredor dos Balcãs” e apaziguar as zangadas opiniões públicas europeias.

Fausto não fez pior. “De Lesbos no Egeu a Lampedusa, no Mediterrâneo, uma Cortina de Ferro desceu sobre o Continente”. Fará sentido reescrever a célebre frase de Churchill nestes dias de chumbo em que a União hipoteca a sua alma humanitária e nobre?