Não, não é uma “cruzada”. É, sobretudo, um desconforto. O que eu sinto quando tenho ao pé de mim alguém que identifica um determinado período como “os melhores anos da minha vida”. Que é — só pode ser, aos seus olhos — um lugar, no passado. Uma recordação bonita. Que não volta mais.

Ora, não estamos a falar de alguém à beira de um colapso. Nem que viva sob uma cascata de acontecimentos que carcomem. Mas de pessoas (muitas delas) muito jovens. Que entendem um determinado período das suas vidas como um planalto de felicidade. Ou de comportamentos que, de tão leves, parecem quase voláteis. Vividos com uma aragem de desprendimento e, mesmo, de “irresponsabilidade”. Que fazem de tudo o que pesa e é sombrio um lugar depois do qual se cresce sempre a descer.

É aqui que o meu desconforto se revela. E toma conta de mim. E, não, não presumam que queira envolver numa película de atitude positiva tudo o que são os sobressaltos que nos atalham. Nem os acontecimentos de vida que chocam connosco e nos destroçam. Nem as pessoas que, porque nos desiludem, quase nos convidam à decepção sobre tudo o que é esperança e nos move e nos resgata e nos transforma. Sim! Para quem os toma assim, “os melhores anos da vida” serão uma espécie de enclave no nosso crescimento semelhante a um paraíso fiscal. Livre de quaisquer coimas da dor ou da maldade. Uma ilusão. Que, de tão efémeros, parecem ter, esponjosamente, à sua espera o desapontamento e a resignação. E onde o entusiasmo — “é só uma questão de tempo” — acaba acantonado num lugar sem referências nem história a que há quem lhe chame “zona de conforto”.

(É engraçado; não é?…) Parece que no imaginário das pessoas com vidas apressadas o futuro d’ “os melhores anos da vida” será “a zona de conforto”. Que se insinua como qualquer coisa semelhante a uma sala alcatifada. De onde se vê a chuva; lá fora. Onde se está acompanhado. Se bem que com um sentimento um tudo-nada entediante e enfadado sobre os nossos dias. Que nos faz sentir engolidos pela vida, quando é vivida “com os pés na terra” (quando “os melhores anos da vida” se dariam connosco “a 10 centímetros do chão”). Que nos faz não cuidar das pessoas. Não cuidar de nós. Não cuidar do corpo. Não cuidar dos sonhos. Como se “os melhores anos da vida” fossem o paraíso da distracções, mas onde (todavia) o essencial nunca se esquece. E “a zona de conforto” o império dos descuidos. Como se “os melhores anos da vida” fossem ricos em instabilidade mas “plenos” de entusiasmo. Um lugar onde se tem a convicção  que se pode ser feliz. E “a zona de conforto” se traduzisse por uma estabilidade pardacenta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É claro que a vida é um bocadinho como os videojogos. “Passar de nível” significa ter desafios sempre mais complexos em mãos. Precisa-se, portanto, de “muito jogo” para que se chegue ao “entusiasmo de ontem” sabendo o que sabemos hoje. E é isso que, às vezes, complica tudo. Porque nem sempre fica claro se, hoje, procuramos o entusiasmo ou se, no fundo, só nos queremos ficar pelas distracções. Seja como for, o que parece ficar no ar é que o caminho até aos “melhores anos da vida” se faz, para muitas pessoas, regressando ao passado. Ora, quando regressamos a um lugar onde fomos felizes, e o confrontamos com as imagens que guardámos, a sensação que fica é que ele já não é tão fantástico como nós o fomos, carinhosamente, guardando. Nem tão imponente. Nem tão grande. Nem tão bonito como o fomos “pintando” só para nós. São os custos de crescer a olhar para trás.

Mas, sendo assim, porque é que, depois de crescidos, ousarmos crescer ascende à condição de “interdito”? Porque é que se repete e se repete que “os melhores anos da vida” já foram, já sucumbiram ou já morreram? “O que é que queres ser, quando fores grande!”, ainda se tolera como uma questão que se coloque a uma criança. Mas sentirmo-nos “grandes” e ousarmos crescer quase nos transforma em “produtos fora do prazo”. No entanto, o desafio que todos temos em mãos não será tanto “o que é que quero ser quando for grande”. Nem será “o que é que eu quero fazer da minha vida”. Já agora, reconhecendo (e eliminando) “o que não gosto nela”. O que me inquieta é que talvez sejam demais as pessoas que assumem: “odeio a pessoa em que me tornei”; sem que, todavia, saiam da sua “zona de conforto”. Não estarão, presumo, nos “piores anos da sua vida”. Mas numa espécie de “terra de ninguém” entre os melhores e os piores anos da sua vida. À qual — vá-se saber porquê — vamos chamando “zona de conforto”.

Parece-me a mim que, às vezes, nos entaramelamos com as palavras. “Zona de conforto” quer dizer que vivemos infelizes; devagarinho. “Melhores anos da vida”, que nos pode faltar, até, um ror de coisas. Mas que acreditamos que podemos se felizes. “Zona de conforto” que vivemos atulhados das saudades do que já fomos. “Melhores anos da vida” que é legítimo querer que a nossa vida tenha “a nossa alma”.

Porque é que passamos a vida a achar que “os melhores anos da nossa vida” ficaram lá para trás? Porque estamos mais velhos? Porque não vamos a tempo de nos “reconvertermos” para a vida? Porque as mazelas da idade se fazem sentir? Sim… Porventura. Mas, sobretudo, porque não acreditamos que as pessoas com quem estamos sejam quem nos permita “ir por ali”. Porque os rasgos de vida que temos com elas não são compatíveis com o sentimento de entusiasmo. Porque não há como nos fazerem acreditar que o melhor dos nossos anos felizes ainda está para chegar. E, não, não se trata de aburguesarmos “o amor e uma cabana” das nossas paixões de antigamente. Trata-se de renegarmos lugares-comuns como aquele que nos aconselha que entre sermos infelizes sem dinheiro e sermos infelizes com conforto, antes sermos “confortavelmente” infelizes. Isto é, a “zona de conforto” é uma forma hábil de reconhecermos que temos medo de ir à procura d’ “os melhores anos da nossa vida”. Como se tudo o que, hoje, nos arrebata ficasse lá para trás.

O desafio que a vida nos põe será, portanto, com quem – sobretudo, com quem — vou à procura de melhores anos que os melhores anos da minha vida. Será o amor adulto quem nos resgata da “zona de conforto”. E a ironia passa por reconhecermos que — para além das cumplicidades mágicas que só o amor adulto nos traz – às vezes, precisamos de atravessar provações para nos sentirmos amados na nossa dor. Felizes, portanto. Por mais que combalidos. E é, chegados aqui, que talvez seja hora de termos coragem de perguntar: mas o que é isso de um amor adulto? Um amor que se faz de cuidados. Que não regateia à palavra. Que se costura de intuições. Que se enturma na fantasia. Que esculpe sonhos a quatro mãos. Que vai da superfície da pele ao fundo da alma. Que faz do entusiasmo uma vertigem. Que traz encantamento. E curiosidade pela vida. E arrojo. E paixão. E desejo de futuro. Um amor adulto faz-se de beleza e de verdade! Mas, sendo assim, o amor adulto só existe nos filmes; será isso? Não! Existe quando não nos sentimos divididos, sem alternativa, entre “os melhores anos da vida” e a “zona de conforto”. Quando insistimos em acreditar (assim nos insubordinemos contra o medo e a preguiça!) que o melhor da vida, ainda — e sempre! — está para chegar.