1 Escrevo no primeiro dia de maio, na luz silenciosa de um grande apartamento lisboeta. E de repente, o tempo saiu lesto e decidido do “hoje” onde estou e foi buscar uma muito, muito longínqua chamada telefónica feita por alguém há exactamente quarenta e sete anos. Deviam ser umas oito e tal da noite, quando o telefone tocou num segundo andar do Campo Grande: “Mário, esta tudo perdido…” pausa. Soares ficou interdito: seis dias após o 25 de Abril, aquele telefonema? Do outro lado da linha, Vítor Cunha Rego não se impacientava: “está sim, você hoje saiu do estádio de braço dado com o Cunhal e não podia…”.

A coreografia daquele aclamatório e tão festivo primeiro de Maio de 1974 que Soares, com Lisboa inteira na rua, celebrara “de braço dado” e “política dada” com Álvaro Cunhal, alertava, sem que ainda quase ninguém tivesse dado por isso, que iria haver mais do que um 25 de Abril. Mas Vítor Cunha Rego, excepcional observador da coisa política, ex-revolucionário, fatalista e recém chegado ao país de um longo exílio pelas américas latinas, dera por isso. Tinha razão: ia começar a revolução. Carimbada aliás um ano depois pela interdição do acesso do “fascista” Soares ao Estádio Primeiro Maio”. Os comunistas não deixaram. Soares não era “daquele” 25 de Abril. Não tinha direito a passar a porta.

2 O 25 de Abril “único” e “de todos” durou apenas algumas horas. Não podia deixar de ser assim. Não por haver naturalmente mais que uma oposição, mas porÁfrica, a questão central que há muito consumia o interior do próprio regime e tornava as coisas ou impossíveis ou irresolúveis. Iria por isso – ou muito por isso – haver mais de um 25 de Abril, haver mais de um “lado” e África iria ocupar então o lugar que competia aos Impérios a caminho de deixarem de o ser: um confuso, violento, enganoso, vexatório dilaceramento. A passagem sem transição de um golpe de Estado para uma revolução comunista nunca permitiria outra coisa. Anulando a posição de moderados, civis ou militares, que de há muito tinham aprendido – e apreendido – o chão africano que tinham pisado, e de há muito reflectido sobre que futuro destino para ele. Nunca puderem dizê-lo ou partilhá-lo, a revolução não deixou: uma poderosa matriz inicial que muito influenciou e muitíssimo determinou o que se seguiu. Até hoje.

3 E no entanto… a aguda consciência da “impossibilidade” da manutenção do Império foi desde a década de sessenta e com a óbvia vontade da democracia um dos mais fortes polos agregadores de uma larga massa de gente, levando-a intervir cívica e politicamente: foram vários os fóruns, várias as instâncias, eram vários os grupos. Vinham da sociedade civil, preferiam as reformas à revolução, a moderação à agitação extremista, queriam uma, digamos, solução negociada para África, oscilavam entre o centro direita e o centro esquerda e acreditavam na bondade da luta “por dentro” do regime. O maior emblema disto que (hélas, apressadamente) descrevo chamou-se Ala Liberal. Acabou mal mas deixou solo arado e semente fértil enquanto outras sementes da oposição moderada iam também frutificando. No início de 1974, sabia-se que se podia contar com “essa” oposição. Era uma realidade com utilidade política: mesmo que inorganicamente, existia. Os capitães de Abril também contaram. E também queriam o mesmo: liberdade, democracia, pluripartidarismo, um Estado de direito, reformas, tratar de África, “descolonizando-a”: no dia 25 de Abril de 1974 não ouvi a ninguém a palavra “independência” alusiva às várias Áfricas onde se falava português.

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4 Em Junho, o I governo Provisório chefiado pelo advogado liberal Palma Carlos sofreu quatro baixas pesadas, entre elas a de Francisco Sá Carneiro e de um militar de boa folha de serviços, Firmino Miguel, conhecido pela sua atitude de equilíbrio e razoabilidade. O I Governo do 25 de Abril caiu sem glória, arrastando na queda qualquer ilusão de moderação política. Vasco Gonçalves, o homem que entrou em S. Bento para render Palma Carlos, era um militar revolucionário próximo do Partido Comunista. O país iria começar a atordoar-se na razão inversa da perda de qualquer sentido de equilíbrio, diálogo ou partilha de responsabilidades nas decisões, escolhas, estratégias, timings políticos, África: esse Império que o general Spínola, depois de o ter servido com brio e honra, tentava agora, sem jeito e com muita infelicidade, impedir que resvalasse até ao abismo onde o despenhariam. Sem tropas e sem oxigénio, mal aconselhado por uns e enganado pelos outros, exit Spínola.

Logo a seguir a agenda fez-se da sucessão de golpes forjados, golpes verdadeiros, pseudo-golpes, inventonas, armadilhas, fugas, manobras. Iniciara-se um processo revolucionário. Os ingredientes (os mesmos, desde que o mundo é mundo) eram conhecidos – saneamentos, perseguições, nacionalizações, ocupações de terras, confisco de empresas, prisões através de mandatos em branco, imprensa censurada (quem esqueceu a “saison-Saramago” no DN ou o violento assalto à Rádio Renascença?), radicalismo, extremismo, agitação. Apoiado num grupo de militares moderados chamado Grupo dos Nove e na sua acção legitimadora, Soares – who else? – ocupou-se pessoal e politicamente do desvio que dia a dia, hora a hora se agigantava no trajecto do 25 de Abril. Juntou-se-lhe o povo, os partidos democráticos, a Igreja, o país quase todo.

Foi duro, difícil, perigoso. Mas a democracia constava, mesmo que ainda incerta, ainda incompleta. E mesmo que só anos depois, graças a alguns socialistas moderados e alguns sociais democratas igualmente moderados, tenha deixado de constitucionalmente ser vigiada para se exercer de pleno direito, à luz do dia.

Ah, e África foi transferida revolucionariamente: era – é – agora comunista. A mais substancial vitória do Partido Comunista Português dos ultimos 47 anos, o mais emblemático fracasso dos outros (mesmo que eles não achem).

4 Porque relembro o que já se sabe? Porque me tem ocorrido reflectir sobre o incalculável valor da moderação em política; porque o ter estado a rever a matéria dos anos imediatamente anteriores a Abril de 74 me fez revisitar esse fresco de moderados de boa colheita que deram boa conta de si: lutando primeiro pela democracia e para que o Império tivesse um fim decente; depois, servindo com generosidade e empenho uma democracia frágil (no parlamento, logo em 1976, eram parte considerável das bancadas).

Também é verdade que este ar do tempo – tão imoderado – me interpela para esta cogitação (e não deixa de ser humano o permitirmo-nos, aqui e ali, a tentação da nostalgia pelo que podia ter sido e não foi…). E sabendo Deus que não costumo chorar sobre o leite derramado mesmo quando o presente – extremado, abusador, intolerante, insultivo, arrogante – me desconforta. Convivo mal com o automático extermínio de qualquer sintoma de equilíbrio, qualquer veio de moderação, qualquer vislumbre de partilha de ideias. Qualquer sinal enfim, de convivência civilizada entre partidos e instituições, protagonistas e decisores, de cada lado do tabuleiro do xadrez politico.

5 E finalmente (ou deveria ter começado por aqui?) porque o recente discurso do Presidente da República – sim, ainda esse discurso – só poderia ter sido o fruto de um moderado. Um político que viveu, conheceu e cresceu no “ontem” – e que em certo sentido é um produto desse ontem – para intervir no combate de um amanhã livre. E por isso, um moderado capaz de mostrar ao país que era possível olhar com equilíbrio para a sua direita e a sua esquerda, dando a ambas igual direito de voz e cidade; cuidando dos que mandam e dos que obedecem, dos que brilham paredes dentro e dos que permanecem à porta; dos nostálgicos pelo que Portugal já foi e dos que se exilaram para fugir com vergonha do Portugal que éramos. Dos felizes e dos infelizes. Dificilmente alguém – mesmo que só um bocadinho extremista, anti-imperialista, etc. – seria capaz de escrever este discurso assim: moderado, conhecedor das duas faces da moeda Portugal, e sem vergonha, acidez ou ressentimento por nenhuma delas.

Palavra de moderado e não será este certamente o menor dos louvores que alguém fará ao Presidente da República.