1 Vivemos tempos estranhos. Tempos em que os radicais tentam reinventar a história. Tempos em que os moderados parecem em queda perante os pequenos Torquemadas de serviço com os seus ridículos autos de fé sobre quem ousa promover debates plurais ou sobre quem quer conversar para tentar encontrar terreno comum ou simplesmente para constatar (sem diabolizar) as diferenças.

Vem isto a propósito do bullying político absolutamente ridículo com que a extrema-esquerda e uma parte dos socialistas brindaram na redes sociais o deputado Sérgio Sousa Pinto e outras figuras moderadas do PS (Álvaro Beleza e Óscar Gaspar) que aceitaram participar na conferência do Movimento Europa e Liberdade (MEL) — um movimento que organiza desde 2019 um encontro para promover o diálogo entre as direitas mas que sempre tentou incluir o centro-esquerda nessa conversa.

Desde o bully oficial nestes temas chamado Daniel Oliveira, passando pelo analfabeto funcional vizinho de cadeira de Oliveira na TV e acabando em comunistas ortodoxos Tiago Mota Saraiva ou em ex-socialistas como Paulo Pedroso — todos malharam forte e feio em Sousa Pinto, como se este fosse o novo infiel da esquerda por colaboração não autorizada com a direita. Só faltou gritarem, como os fanáticos tontos do MRPP, “Morte aos traidores!”

Além de já ter respondido muito bem (ver aqui o programa “A Lei da Bolha” entre os 23m15s e os 26m40), Sérgio Sousa Pinto não precisa da minha ajuda para se defender. O que me interessa neste tema é o que ele diz sobre o grau de intolerância e sectarismo da esquerda portuguesa — que está quase ao mesmo nível das idiotices de André Ventura.

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2 A desculpa para o bullying foi a presença de André Ventura no encontro do MEL. Dizem os bullies que Sousa Pinto está a “legitimar o branqueamento democrático de André Ventura” (Paulo Pedroso), que ao aceitar estar presente no mesmo encontro que Ventura não está na “trincheira contra o racismo” (ao contrário de Daniel Oliveira) e que “personifica a figura de idiota útil da direita”, além de ser “desinteressante” e “repugnante (Mota Saraiva). Por aqui vemos o nível do debate.

Como não podia deixar de ser, a desonestidade intelectual marcou as apreciações dos bullies. Sérgio Sousa Pinto vai participar num encontro num painel sobre “A Intolerância Cultural e a Ditadura do Politicamente Correto” com nomes como João Miguel Tavares, Helena Matos ou Pedro Boucherie Mendes (todos perigosos fascistas e racistas, já se sabe), enquanto que André Ventura vai fazer uma intervenção livre sobre o assunto que entender num horário diferente. O facto do nome de Ventura aparecer no cartaz do evento logo a seguir ao painel de Sousa Pinto foi o catalisador para os bullies dispararem. Mas se não fosse isso, outra coisa seria.

Para os bullies, o problema de André Ventura não tem outra solução política que não seja uma espécie de política do muro de Berlim com fins politico-sanitários. Cerca de 500 mil portugueses votaram em Ventura em janeiro deste ano? Não deviam nem podiam! O Chega rivaliza com o Bloco de Esquerda nas sondagens e arrisca ter quase 10% e um grupo parlamentar entre 5 a 10 vezes maior do que tem atualmente? Não pode!

Logo, não se pode estar, comunicar ou dialogar com André Ventura. Quem o faz está a legitimar Ventura porque, na prática, está a dar-lhe voz e a ser cúmplice das suas ideias. Se assim é — e mais uma vez, as luminárias voltaram a provar que é mesmo assim —, então a solução é política e só uma: a ilegalização do Chega, como Ana Gomes bem fez questão de explicitar durante a sua campanha presidencial.

Não passa pela cabeça desta gente tão inteligente e culta que tal política só reforçará Ventura. Quanto mais o colocarem numa espécie de gueto político, mais o Chega crescerá e se reforçará. Porque a lógica política da extrema-direita é precisamente essa: precisa de inimigos para continuar a crescer, ao mesmo tempo que se faz de vítima face ao ‘sistema’. A tentativa de ilegalização do Chega é um seguro de vida para Ventura.

3 Além dessa receita errada, há outra análise que pode ser feita sobre esta polémica. O ponto de ataque  escolhido foi a presença do líder do Chega. Mas se não fosse Ventura, seria Jaime Nogueira Pinto. E se não fosse Nogueira Pinto, seria Pedro Passos Coelho. E se não fosse Passos Coelho seria o Coelho de Alice no País das Maravilhas. Tudo serviria para atacar os moderados do PS.

Porquê? Porque estes são um alvo a abater para esta esquerda pura que vai do PCP, passa pelo Bloco e acaba na ala esquerda do PS. Estes puros — do verdadeiro socialismo no sentido neo-marxista do termo — querem que o PS mantenha as pontes de diálogo construídas por António Costa com o PCP e o Bloco, pois só assim estes partidos terão alguma influência e acesso ao poder executivo.

Este é o fundo da questão nesta polémica — e, em termos práticos, é uma antecipação do que virá a ser a guerra interna do PS após a saída de António Costa. O que os bullies querem é abater e enfraquecer os moderados socialistas, pois estes defendem um regresso ao PS clássico que, respeitando a história de 74/75 e a sua ligação aos movimentos trabalhistas europeus, prefira um diálogo com o centro-direita (PSD e CDS) em vez de geringonças com a extrema-esquerda.

4 O vírus do sectarismo que historicamente caracteriza a extrema-esquerda pode vir a contaminar uma parte PS e a destruir paulatinamente a cultura de debate plural que sempre caracterizou o partido de Soares. É esse o objetivo dos bullies a quem tanto horroriza que socialistas dialoguem com o centro-direita ou que até apareçam ao lado de social-democratas como José Pedro Aguiar Branco, como fez Álvaro Beleza num documentário sobre a Revolução de Veludo que depôs o comunismo na Checoslováquia.

Daí que o centro da estratégia do bullies seja o ataque a figuras como Francisco Assis ou Sérgio Sousa Pinto, socialistas que têm honrado a memória de Mário Soares ao comportarem-se como homens livres que pensam pela sua cabeça, em vez de seguirem o diretório da liderança do PS ou o politicamente correto da esquerda bem pensante das redes sociais.

Repito: Ventura foi só uma desculpa. Assis e Sousa Pinto têm sido perseguidos pelos bullies desde que se manifestaram contra a Geringonça, logo em 2015. Os puros não lhes perdoam isso.

Sejamos claros: os verdadeiros democratas não se comportam com os bullies desta história. Um democrata não ‘cancela’ uma voz dissonante, debate. Um democrata não ergue um muro em redor de um adversário para ilegalizá-lo, tenta influenciá-lo ou derrotá-lo em eleições com as suas ideias. E um democrata não transforma um adversário num inimigo para legitimar a sua aniquilação, defende sempre, mas sempre, o pluralismo.

Ao contrário do que pateticamente os derrotados do PREC (PCP e Bloco) tentam demonstrar todos os anos na Avenida de Liberdade, o 25 de Abril de 1974 não lhes pertence — nem nunca lhes pertenceu, verdade seja dita. Abril só foi concretizado com a construção de uma Democracia pluralista, de todos para todos. Não tem donos nem preâmbulos constitucionais que impeçam o curso natural do diálogo entre todas as forças democráticas, independentemente das suas convicções ideológicas.

É por isso que mais vozes, como a de Sérgio Sousa Pinto, têm de ser ouvidas. Este é um tempo em que os moderados têm de se levantar e ganhar voz no espaço público. Só assim é que os velhos tribalistas serão naturalmente derrotados.