O meu artigo de 17 de Fevereiro não caiu bem junto de alguns dos meus amigos católicos, o que evidentemente não tem importância nem para eles nem para mim – é apenas um facto quase anódino.

Será talvez natural. A Igreja Católica tem abundantes inimigos e muito na hierarquia e alguma coisa nos crentes há a reacção instintiva de sitiado: os abusos são uma vergonha, mas não apanhem a boleia para crucificar a instituição nem para meter todos os clérigos, salvo prova em contrário, no saco dos prevaricadores sexuais.

A boleia, em graus diversos, tem sido prazerosamente usada como vingança difusa contra um passado descontextualizado – a Inquisição, o monolitismo, a inferioridade da mulher, o diabo (é o caso de dizer) a quatro; e contra um presente de desalinhamento com uma parte significativa dos cidadãos e até dos católicos, em questões como a despenalização do abortamento e a eutanásia, entre outras. E como estas últimas questões fazem parte da luta política, a desvalorização de uma instituição que tem posições que coincidem com um dos lados da barricada é uma (mais uma vez – é o caso de dizer) bênção do Céu para quem está do outro. Depois, ao Papa actual já aconteceu com demasiada facilidade pronunciar-se sobre questões de ordenação social num sentido que parece socializante, o que o agracia junto de uns que navegam nessas águas, mas faz torcer o nariz a quem entende que a defesa dos pobres se pode fazer de muitas maneiras, uma delas não sendo a espoliação dos ricos – a César o que é de César, Francisco às vezes esquece.

Foi este mesmo Papa que deu o impulso decisivo para enfrentar o problema dos abusos sexuais na Igreja, não sendo possível apurar (ao menos eu não sei apurar) se por achar que o modelo tradicional de achar que o abuso do prelado ofende mais a Igreja do que a vítima, se por entender que a maré das denúncias se transformaria, sem reformas, num tsunami.

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É esta mudança de atitude que está na origem do convite da Conferência Episcopal à formação de uma Comissão Independente. E agora que esta produziu o seu extenso Relatório, o qual deu origem a uma Declaração da mesma Conferência, e outra no seguimento da anterior, vão-se lentamente formando trincheiras.

Há cinco:

  1. A dos católicos que acharam a Declaração tíbia, no tom, nas medidas e na ausência de referências a indemnizações;
  2. A dos ateus ou agnósticos que nela veem as mesmas insuficiências, quer reconheçam quer neguem a imensa utilidade social da Igreja;
  3. A dos católicos que cerram fileiras verberando o Relatório por fazer extrapolações estatísticas (para o número provável total de casos) que acham erróneas, que condenam a exigência de afastamento de prelados com base em meras denúncias, com descaso de contraditório e provas, e chamam a atenção para casos do mesmo tipo em instituições de guarda de menores não religiosas, ou no seio das famílias, ou em organizações que, pela sua natureza, facilitem a exposição de menores a adultos, como os escuteiros;
  4. A daqueles que entendem que se deve dar o benefício da dúvida porque o Relatório, enquanto tal, não dá nem podia dar origem imediata a sanções, desde logo pela confidencialidade dos testemunhos, essencial porque sem ela o número de denúncias seria muito menor, mas que o trabalho vai prosseguir, igualmente por uma Comissão, a qual terá uma maioria de elementos não dependente da Igreja.
  5. A daqueles católicos que não leram o Relatório e não ouviram a declaração, apenas sabem do caso o que a comunicação social diz, mas, como medida precaucionária, ou retiram filhos de actividades ligadas à Igreja ou se envolverão com muito maior proximidade, espirrando ao menor sinal de alarme.

Por mim, estou no penúltimo grupo. Mas entendo que os do terceiro fazem um desserviço à Igreja. Explico:

A ciência da estatística é ininteligível para quem nela não tenha formação, daí decorrendo que as expectorações de indignados, mormente prelados, sem outro fundamento que suficiência pedestre, valem zero; a exigência de afastamento de autores de abusos ou que a eles deram cobertura não tem lugar, por quem faça mais do que apenas vociferar, ignorando os direitos de defesa. Porém, haverá que ter em conta que não estamos a falar de processo penal (disso se ocupará o MP e os tribunais, se casos perseguíveis lá chegarem), pelo que o recurso a prova testemunhal e indiciária deverá ser suficiente, se uma e outra forem consistentes, nomeadamente se não for apenas um caso de abuso perpetrado pelo mesmo presumido criminoso, ou de negligência; as ocorrências do mesmo tipo de ofensas na família e instituições (há que lembrar a Casa Pia, de infausta memória) têm a mesma gravidade objectiva. Porém, das duas uma: ou a Igreja, a meu ver bem, se reclama de um múnus que, pela Fé e dedicação dos seus membros, é particularmente exigente, ou acha que é uma entidade como as outras. As duas coisas, ao mesmo tempo, é que não pode ser.

Haverá que referir a este propósito que esta comoção terá, espera-se, afinação de processos na esfera civil – algum bem virá talvez deste mau passo.

E é claro que o projectado memorial às vítimas a inaugurar aquando das Jornadas Mundiais da Juventude é uma iniciativa infeliz: Pompa, celebrações, discursos com palavras fortes (vergonha, escândalo, dor, sofrimentos incomensuráveis, perversidade, etc.) são certamente oportunos. Mas conviria, antes de fazer memoriais, ter presente que o passado não está morto, porque há transgressores no activo e ofendidos vivos.

Finalmente: A opinião pública é assaltada com pelo menos um escândalo por quinzena e cansa-se facilmente. Espero que os senhores bispos que produziram aquelas declarações enfáticas em, se me permitem a irreverência, palavreado de sacristia, bem como a patrulha encarniçada dos amigos equivocados da Igreja, não contem com isso para arrastarem os pés e as vontades. Porque dentro de pouco tempo deixar-se-á de falar no assunto, o que não é a mesma coisa que achar-se que os fiéis se esquecem e que a Igreja pode dar o exemplo sem ser exemplar.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.