Na semana passada, a notícia de que um homem de 54 anos havia sido escravizado durante 17, em Bragança – não possuindo documentos, dormindo num furgão, e sendo alugado a terceiros – teve relevo suficiente para ser introduzida como “a história que está a chocar o país”. Se o fez, o choque parece ter durado pouco tempo. Talvez, porque são episódios como estes que fazem cair a ideia de que Portugal é um país de brandos costumes, habitado por suaves portugueses e onde reina o “respeitinho”.

Na verdade, o olhar sobre o país que é constantemente vendido e servido, desde a escola até ao comentário político, tem um enorme viés: coloca sempre as elites urbanas no centro. Mesmo a ideia queirosiana de “choldra” pretende denunciar a disfuncionalidade do poder. Mas falta uma verdadeira denúncia da violência que vai para lá dos corredores dos ministérios, ou dos sunsets das celebridades. Do tanto que existe para lá dos caretos de Podence e das lavradeiras do Minho, nos lugares apelidados, de forma paternalista, como “país real” e “Portugal profundo”. Da linguagem onde não cabem expressões como “coração do regime” ou “país político”.

A necessidade é urgente. Em primeiro lugar, porque Portugal é, historicamente, um país tão ou mais violento que os restantes países europeus. Para isso não é preciso recuar mais do que 200 anos. Em Abril de 1824, Portugal havia assistido à Abrilada. Uma revolta política e militar que prenunciava a guerra civil, que dividiria o país de 1828 a 1834. Ora, a disputa entre miguelistas e liberais surgiu em consequência da revolução liberal de 1820, que tinha já acontecido na sequência das invasões napoleónicas (1807-1814). Menos de 100 anos depois da revolução de 1820, sucederia outra revolução: a implantação da República, cujo rasto tinha já o sangue do regicídio de 1908. Após 1910, a primeira república foi marcada por um enorme caos político — onde se incluíram a participação de Portugal na primeira guerra mundial e o assassinato de um presidente da república –, o que levaria a um golpe militar, 11 anos depois, fundador de um regime ditatorial que, mesmo com transformações, só terminaria em 1974, com outra revolução.

Por outro lado, não é difícil sentir que o caso de Bragança é uma espécie de último grau do mundo do trabalho e das relações em Portugal. Não raro, o enfoque da nossa lente tem estado equivocado. O microfone dado às legítimas lutas sindicais, não capta a submissão de quem não tem sindicato que o represente. Os apelos a favor da emancipação da mulher parecem demasiado avançados num país onde, à mesa, ainda é “homens para um lado e mulheres para outro”. A insurreição a favor do clima demoniza muitos cuja agricultura é o último reduto da sobrevivência.

Foi sob esta realidade que se estendeu, permanentemente, um manto de esquecimento. E falar dos excessos do colonialismo sem falar dos herdeiros do contrabando, da “lota negra”, do “bolso roto e pé descalço”, dos “pais incógnitos”, é esquecer que mais insidioso que a servidão sem privilégio, é o privilégio da servidão.

Há uns anos atrás, numa visita a Ponte de Lima, expliquei a um italiano o significado dos conceitos de sarrabulho e cabidela. “Vocês são bárbaros”, disse ele. “Nada disso. Temos é demasiado pouco, para desperdiçar o que quer que seja”, respondi. Ainda assim, somos vistos como usurpadores.

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