Um país não é uma pessoa. Um país é feito de pessoas. Mas um país tem direito a ser feliz e um país só é feliz se o forem as pessoas do país. Os portugueses são felizes?

O relatório anual da ONU coloca Portugal como o 94º país mais feliz do Mundo em 2016… sendo analisados 157 países, isso significa que estamos na metade inferior da tabela. Os portugueses são infelizes?

É tudo relativo, claro. No dia da graça de 13 de Maio passado, milhões de portugueses sentiram-se felizes, arriscaria mesmo dizer extremamente felizes. Os católicos, por ver e tocar o Papa da esperança, os benfiquistas pelo 4º título consecutivo, a maioria pela primeira vitória de um português no festival da eurovisão.

Portugueses felizes, país feliz? Nem todos. Nem tanto.

Os ateus e os agnósticos (mais aqueles do que estes) não comungaram, naturalmente, do júbilo dos cristãos. Podem até ter apreciado a visita do jesuíta franciscano que é Francisco e da projecção global de um fenómeno nacional (local), mas isso não os terá tornado mais felizes. Também não rejubilaram os milhões de portugueses que não são do Benfica, alguns sentiram-se até infelizes. Sobra Salvador Sobral e o seu caso merece alguma reflexão adicional, a juntar aos milhares de palavras que sobre ele já foram escritas.

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A música é muito boa (mas muitas músicas boas levou Portugal ao eurofestival ao longo dos anos, as quais tiveram, na maioria, zero points). A voz é excelente (mas tantas vozes excelentes, etc.). Cantou em português (cantámos quase sempre em português). Cantou muito bem, em português, uma música boa, o que não destoa dos outros portugueses que cantaram muito bem, em português, músicas boas. O que distingue Sobral?

Entenda-se bem, é imenso o mérito de Salvador e da irmã. Mas por que ganhou ele este ano com uma canção lenta, dolente quase, cruzamento de balada, fado e bossa nova? Não faço ideia, só recolho razões do muito já dito: cansaço de canções festivaleiras e sem conteúdo; uma maneira sentida de cantar, gestos surpreendentes, uma interpretação que nos interpela; a força de uma história, a comoção pela doença (que ambos tiveram a coragem de nunca evocar); a forma quase obsessiva como a melodia se pega ao ouvido, se propaga ao coração e não se apaga; um poema que conta uma história simples, como é quase sempre o amor.

Não sei, não sei. Mas sei uma coisa que não é agradável: já Sobral (os Sobrais) ganhara o luso festival e ainda poucos de nós sabiam quem ele era; ainda ele não viajara para Kiev e já a maioria decidira, por convicção ou desconhecimento (festival da quê?), que iria ignorar mais uma vez, como há tantos anos, esse ridículo evento eurofestivo em que os nossos artistas, a nossa música e a nossa cultura foram sempre ignorados. Até que…

Até que um rumor se levantou a leste, sobre um jovem português de olhos esbugalhados e gestos estranhos que começava a conquistar corações. Que a música “amar pelos dois” subia na lista dos favoritos, se tornava ela mesma favorita, surpreendia os comentadores, abalizados ou não. E de repente eu (me confesso) resolvi dar atenção; escutei pela primeira vez a canção; não fiquei convencido … aquele gesto da cabeça, os estranhos requebros inabituais…

Ouvi outra vez, melhorou. Nas redes sociais crescia o rumor. Depois, Luísa Sobral cantou-se a si mesma nos ensaios, a lenda de Salvador ganhou corpo. Voltei a ouvir a música, uma vez e outra, em mais do que uma versão; comecei a dar por mim a trautear “meu bem, escuta as minhas preces”, embalado por uma estranha e bela melodia, como o som da água fresca inesgotável de um ribeiro a descer uma colina verde. Esperança.

Eu e milhões de outros demos-lhe atenção. E Salvador Sobral ganhou, fez-se o herói novo de uma nação agradecida. Dizer menos é dizer nada. Fez afirmações certeiras, foi irreverente, a espaços iconoclasta, manteve sempre uma calma olímpica. Salvador é bom, é muito bom.

E eu pergunto: só agora é que ele é bom? Teve de ganhar a eurovisão para conhecermos a sua “voz de anjo”? Saber que canta como sente, que sente o que canta (talvez sinta porque canta)? O que me leva a outra reflexão, suscitada aliás por uma frase de Pedro Magalhães nas redes sociais: porque precisamos tanto de reconhecimento alheio – da comunicação social, dos governantes, das redes sociais, das pessoas dos outros países – para repararmos nos nossos talentos, nos nossos jovens, nos nossos salvadores sobrais?

Quem se fica por Portugal corre o risco de aqui estiolar. Talvez por isso não consigamos ser felizes: esta terra bela, este pequeno país que amamos, não se auto-estima. Os portugueses sabem que para serem reconhecidos cá dentro têm primeiro de triunfar lá fora. Caso contrário, o seu valor é quase sempre menorizado. “Façam favor de ser felizes”, dizia Raul Solnado. Mas ninguém devia ter de fazer esse favor.

Vivemos um tempo extraordinário, em tudo semelhante ao que o país conheceu nos finais dos anos 90: então, como agora, fomos grandes, organizámos a Expo-98, cumprimos os critérios de convergência, entrando no primeiro pelotão do euro, começámos a participar regularmente em fases finais de grandes competições de futebol, ganhámos o prémio Nobel (ganhou-o Saramago, a viver em Espanha), o PIB crescia perto dos 3%. Fomos felizes.

O 13 de Maio de 2017 é o nosso novo momento feliz. Vivemos um período em que, de repente, o Mundo olha para Portugal e nos reconhece; um momento raro de conjugação de triunfos desportivos e artísticos, de afluxo sem precedentes de turistas apaixonados pelas nossas cidades, pelo nosso clima, por nós. E até a economia ajuda. Mas se não aproveitamos esta oportunidade para nos darmos importância, para valorizar os nossos jovens enquanto cá estão, reconhecendo-os, premiando-os, aplaudindo-os – que o mérito não seja consagrado apenas nas chegadas ao aeroporto – então teremos desperdiçado mais um momento feliz.

“Salvadorable” é uma notável hashtag: mas “Salvadorável” não lhe fica atrás, pois não?

Que diabo, Portugal não pode ser mais infeliz do que a Noruega, a Costa Rica, o Chile, a Arábia Saudita, a Venezuela, o Kazasquistão, o Peru, a Croácia ou o longínquo Butão.

E se esta crónica parece digna de uma redacção de criança, talvez seja porque as crianças portuguesas merecem aprender a ser felizes; para que o país, quando crescerem, o seja também.