Corria o ano de 1976 e David Mourão-Ferreira, então a liderar a Secretaria de Estado da Cultura, concedia diretrizes para reunir o espólio de Arte Contemporânea do Estado Português. Volvidas mais de 4 décadas após este marco, surge, pela primeira vez (sim, leu bem), a decisão de inventariação deste espólio. Deste processo complexo, resultou uma apreciação simples: ora, das 1367 obras adquiridas, 170 assumem-se pelo relatório governamental em «localização desconhecida», após este processo estar «concluído».

Posto isto, a Direção Geral do Património Cultural descreve, depois de «fazer chegar definitivamente ao fim» (definição de “concluir” pelo Dicionário Priberam) este processo, que as obras estão desaparecidas. Repare-se que estas são definições bastante explícitas, quer por parte da DGPC, quer por parte do Priberam – que, atrevo-me a dizer, cai até numa definição marcadamente pleonástica para o vocábulo “concluir”. Em todo o caso e após o comunicado do Estado, a atual Ministra da Cultura, que tem como uma das suas funções orientar a DGPC, veio acalmar as hostes, desdizendo o dito: «as obras não estão desaparecidas, apenas precisam de uma localização mais exata».

Portanto, depois de já termos visto real estate de Sócrates que, afinal, não é de Sócrates (o que esteve por Évora, não o da Grécia Antiga), quadros de uma «Coleção Berardo» que não são de Berardo, chegam-nos agora obras-de-arte que, segundo a ministra da Cultura, têm uma localização que, apesar de ninguém suspeitar qual é, apenas necessita de ser «mais exata». Compreendo que o leitor se sinta ligeiramente confuso, após o relatar de acontecimentos particularmente estranhos. Porém, em defesa do bom nome da ministra, há que confessar que este fenómeno não é caso único. Por exemplo, sucede, diariamente, a um sem-número de miúdos bem-intencionados pelo mundo algo semelhante. Quando certos professores questionam pela realização dos «trabalhos de casa», estes afirmam que os têm feitos – mas algures numa localização por localizar.

Repare-se, ainda, como o mundo, por vezes, é tão injusto: idolatra-se, há mais de dois milénios, um homem que caminhou sobre a água e que ressuscitava pessoas a um nível tão empenhado quanto o fisco penhora automóveis em operações stop ou interrompe cerimónias de casamento, mas depois não se venera uma devota senhora, de seu nome Graça Fonseca, com este poder sobrenatural e dicotómico para as localizações…

Em suma, paira uma enorme confusão no flanco governativo, que ainda não sabe bem como “emoldurar” tantos e diferentes quadros: os de Berardo, os do Ministério da Cultura e, ainda, os altos-quadros governativos que tem distribuído a familiares, à Lagardère. Questão para se constatar que estamos – relativamente – prejudicados, enquanto contribuintes que vamos pagando as trapalhadas que alguns nos deixam, em movimentos sempre pouco “exatos”, mas com um pendor inegavelmente artístico.

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