Existem momentos em que a repulsa nos assalta e supera cada uma das outras emoções. Em que brechas na nossa capacidade de confiar são moldadas, levando-nos ao desalento e ao ceticismo perante os outros, quer sejam indivíduos ou instituições. Em que, no fundo, refletimos profundamente acerca dos mecanismos de sustentação do mundo, inquietos e frustrados perante tanta injustiça. E só nos apetece dizer uma palavra: Chega!

Obviamente – ou talvez de forma não tão óbvia – utilizo a sua palavra no seu sentido original, e não numa dimensão partidária. Ainda que a Grande Reportagem que a SIC apresentou, “Quando o ódio veste farda“, teça uma relação de simpatia e mesmo afiliação entre os discursos agressivos e discriminatórios de agentes da polícia e o que é reivindicado como ideologia matricial do partido Chega. É sempre interessante pensarmos que cada um de nós, como elemento de um Estado democrático e com leis organizadas, atribui o monopólio da violência legítima a estas pessoas, a quem armamos para nos defenderem e que acabam por se defenderem ameaçando utilizar armas sobre outros. Nesta inversão das missões os bons polícias, aqueles que cumprem as normas que lhes competem e possuem uma conduta de rigor e, frequentemente, mesmo humanista, são, à semelhança de tantas outras – mulheres, pessoas com orientação não heterossexual, de cultura cigana ou africana, ativistas e políticos – também vítimas de uma amostra que desvirtua os códigos de honra das forças de segurança.

Como sociólogo com um mestrado em Ciências da Educação, custa-me perceber que peças jornalistas ou trabalhos de investigação científica nos mostrem que ainda existem tantas pessoas que atribuem pecados capitais a grupos identitários e que a educação não esteja a conseguir produzir uma cidadania consciente em pleno. Numa era em que o desenvolvimento pessoal dita a necessidade de encararmos cada pessoa como um ser com personalidade única e, em simultâneo, identidades múltiplas, continuar a considerar que negros, gays ou trans e mulheres são, por estes atributos, humanos de menor valor é entrar em contradição com os paradigmas das vivências atuais e com as lições que a história nos ensinou. O pior, no entanto, é quando este preconceito dimana de uma instituição legitimada, abrindo espaço à suspeita dentro de uma sociedade e ao medo de ser violentado. Todas as pessoas têm os mesmos direitos, mas há um conjunto de indivíduos – os que de algum modo nos representam – que possuem mais deveres do que outros. As forças de segurança encontram-se neste grupo e devem estar conscientes do ónus – e do privilégio – que é assumir este papel.

Por isso, também não é razoável considerar-se, como já vários vieram comentar, que insultos e intimidações no meio digital constituem somente desabafos que, na maior parte das vezes, não passam de palavras sem quaisquer atos associados. Em primeiro lugar, os polícias e outros operacionais não compreendem que, se é mais fácil propalar injúrias atrás de um ecrã, também se torna mais simples captar esses ataques e confrontá-los com a justiça? Por outro lado, quem consegue garantir não existir, para uma dada situação de contenda entre um agente e outro cidadão, um continuum que parte das letras para investidas físicas e armadas?

Quando os fardados incorporam o ódio por via dos facilitismos e simplismos a sociedade nunca consegue avançar como um todo. Esta forma de exercer a aparente segurança geral por via do sacrifício da segurança de alguns é um modo de fazer da necessidade que todos nós temos de proteção uma política sem escrúpulos. Isto leva-nos, pois, a proclamar que chega de tanto sofrimento para pessoas de grupos que, durante séculos, viveram marginalizadas e ostracizadas. Chega da abominação que é gerar a cólera entre sujeitos e potenciar o caráter dramático do conflito social. A democracia só sobrevive com o entendimento racional de que todos temos a mesma prerrogativa de viver e prosseguir com os nossos sonhos. Se a reportagem é “uma homenagem a todos os polícias que honram a farda” (SIC, 2022), este texto é uma evidente crítica àqueles que retiram o mérito à profissão e se deixam rastejar em lamaçais de fobias várias. Num país como Portugal importa mostrarmos que a nossa famigerada pacificidade não advém do conformismo e da ignorância premeditada, mas sim de uma crítica atenta e de um empreendimento ativo na desconstrução e eliminação dos obstáculos ao êxito societal em termos de igualdade de direitos e oportunidades.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR