O processo de revisão constitucional, que tem actualmente lugar na Rússia, além de mostrar que não passa de mais uma farsa para perpetuar o “putinismo” no poder, revela também uma vontade de fazer regredir a sociedade russa a épocas sombrias.

O exemplo é dado pelo Presidente russo Vladimir Putin, quando faz afirmações do tipo “Enquanto eu for Presidente, na Rússia nunca se legalizarão os matrimónios entre pessoas do mesmo sexo”.

Como cidadão, ele pode dizer o que quiser, mas, no cargo de Presidente do país, o seu objectivo deve ser respeitar a vontade dos restantes cidadãos e não impor as suas convicções à sociedade ou atiçar a guerra contra as minorias sexuais.

Isto é ainda mais grande grave quando ele enfatiza as palavras “enquanto eu for Presidente”, pois, como é sabido, Putin já se encontra nesse cargo há vinte anos e só Deus sabe quando é que ele tenciona deixar o Kremlin ou partirá para o mundo do além, como qualquer um dos mortais.

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Neste caso, tenho uma posição idêntica à do Presidente russo no que respeita aos casamentos homossexuais, mas não concordo com o modo imperativo com que ele fala, deixando claro que outros cidadãos russos não possam pensar de maneira diferente e não tenham voto na matéria enquanto ele dirigir a Rússia.

Se esta afirmação tivesse sido feita por Donald Trump ou Jair Bolsonaro, seria considerada “boçal” e “reaccionária” por uma determinada esquerda, mas a Putin, o “principal combatente anti-imperialista”, tudo é perdoado.

Durante a discussão das emendas a fazer à Constituição da Rússia, surgem propostas que pretendem ir ao encontro da “defesa dos princípios tradicionais”, ideia tão querida de Putin com vista a “salvar” a Europa do declínio liberal.

Por exemplo, Kirill I, Patriarca Ortodoxo de Moscovo e de toda a Rússia, defende que a lei máxima não pode deixar Deus de fora, no entanto não explica como, num país com uma diversidade religiosa tão diversa, será possível fazer isso. A violação do princípio da separação entre o Estado e a Igreja é, por si só, um anacronismo, tanto mais na Rússia, onde a Igreja Ortodoxa já teve uma má experiência neste campo. Entre os reinados de Pedro o Grande, início do séc. XVIII, e de Nicolau II, início do séc. XX, a Igreja Ortodoxa não era dirigida por um Patriarca, mas pelo Estado através do Santo Sínodo, órgão chefiado por um leigo nomeado pelos czares.

Além disso, nem todos os cidadãos da Rússia adoram o mesmo Deus. Cristãos, judeus e muçulmanos até poderiam chegar a um acordo sobre esta questão porque seguem o mesmo Deus, mas o que fazer com os budistas e xamanistas, religiões seguidas por vários povos que fazem parte do país? E os ateus e agnósticos?

Aliás, a Igreja Ortodoxa Russa destaca-se cada vez mais por princípios retrógrados. O arcipreste Smirnov, que dirige a Comissão do Patriarcado de Moscovo para os Assuntos da Família, considera que o casamento civil não passa de “prostituição grátis”.

Para este sacerdote, a paixão é uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. “Enumero os seus sintomas: o coração bate mais rapidamente, as mãos soam, distracção… aumento da possibilidade de ficar debaixo de um carro, confusão na fala, falta de lógica, surgimento de insónias, subida da temperatura”, frisa o arcipreste Smirnov, e acrescenta: “Se se festeja o Dia de todos os Apaixonados, então deve-se festejar o Dia dos Tuberculosos, o Dia dos Doentes com Hepatite A,B,C”.

À fúria deste clérigo não escapam a teoria de Darwin, nem a “fraqueza do intelecto feminino” ou a “tragédia da inadequação” da esmagadora maioria dos homens russos por causa das mulheres.

Nos canais de televisão controlados pelo Kremlin, continua a “lavagem ao cérebro” em programas especialmente dedicados à “discussão” das emendas à Constituição. Por exemplo, politólogos fiéis ao regime tentam convencer o auditório de que “democracia” e “narodovlast” (poder do povo) são conceitos completamente diferentes, defendem que o primeiro conceito deve ser substituído pelo segundo na língua russa, porque a democracia é o “poder da minoria” e o “poder do povo” representa a maioria. Segundo esses ideólogos, a Rússia já foi mais longe do que o mundo ocidental no que respeita ao apoio do povo.

Entretanto, aumentam as repressões contra os que pensam de forma diferente. Não obstante Vladimir Putin considerar “totalmente absurda” a lei que proíbe a actividade das Testemunhas de Jeová na Rússia e as coloca ao lado de organizações terroristas como o Estado Islâmico, as autoridades continuam a perseguir e a condenar a pesadas penas de prisão os membros dessa organização religiosa. A tortura é cada vez mais um instrumento de arrancar “confissões”.

É importante assinalar que este tipo de política continua a gozar do apoio ou do silêncio das chamadas extrema-esquerda e extrema-direita. Ambas apoiam o ódio dos dirigentes russos às sociedades ocidentais.

E deixo aqui um humilde recado aos católicos conservadores que vêm em Putin o salvador dos “valores tradicionais” e tentam uma maior aproximação com a Igreja Ortodoxa Russa nessa base. Recordai-vos que, para os dirigentes ortodoxos russos, a Igreja Católica foi e continua a ser o principal inimigo dos ortodoxos, uma corrente herética, um dos principais obstáculos na “salvação da Humanidade”.