A recente detenção de José Antonio Urrutikoetxea, conhecido como Josu Ternera, histórico dirigente da ETA a monte há quase duas décadas, foi noticiada com o recurso a adjectivos equívocos. A BBC descreveu a ETA como organização “rebelde” enquanto a Reuters preferiu o qualificativo “separatista”. Por cá houve abordagens idênticas.

A rebeldia é inegável, pois a ETA sempre pautou a sua conduta por insensibilidade e obstinação. Da mesma forma, o separatismo é evidente, já que a organização pugnou pela independência do País Basco. São, porém, termos ambíguos, e sobretudo curtos, não sendo preciso sair de terras bascas para perceber porquê.

Praticamente desde a sua génese, situada entre os finais do século XIX e inícios do século XX, que existem no nacionalismo basco duas grandes correntes. Por um lado, uma corrente soberanista, de corte radical, pouco disponível para a coexistência com Espanha. Por outro lado, uma via dita moderada, movida pela intenção de obter maior autonomia para o País Basco dentro de Espanha, uma forma de nacionalismo que, parafraseando Fernando Savater, olha para a independência como os católicos olham para o céu: um sítio idílico ao qual ninguém tem pressa de chegar.

A ETA inscreveu-se na primeira, a radical ou independentista, onde foi antecedida por organizações como o PNV Aberriano (1921-1930), o colectivo Jagi-Jagi (durante a II República) e o grupo Ekin (década de 1950). Todas estas organizações foram “rebeldes” e “separatistas”, porventura até extremistas. Contudo, ao contrário da ETA, nenhuma recorreu de forma preferencial e sistemática à violência enquanto instrumento de acção política. Não é uma diferença menor.

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Embora a abordagem histórica baste para perceber as limitações dos termos “rebelde” e “separatista”, importa recordar que dos 59 anos de existência da ETA 40 foram passados em democracia. Note-se igualmente que cerca de 95% das vítimas assassinadas pela organização se situam no período pós-1978, isto é, depois da aprovação em referendo da Constituição democrática hoje vigente. Rebeldia e separatismo são, de facto, palavras curtas.

Josu Ternera, agora detido, liderou a organização basca durante um período especialmente sangrento. É responsável pelo atentado à casa-quartel da Guardia Civil em Saragoça, a 11 de Dezembro de 1987. Apesar de ser um edifício militar, destina-se a acolher as famílias dos gendarmes espanhóis, permitindo a estes profissionais, muitas vezes deslocados do seu local de residência, ter os seus familiares por perto. Atentar contra uma casa-quartel é, portanto, visar civis de forma consciente e declarada. Neste ataque bombista morreram 11 pessoas, seis das quais eram crianças. Em Maio de 1991, é atacada outra casa-quartel, desta vez em Vic (Catalunha), onde dez pessoas perderam a vida, entre as quais cinco crianças. Antes destes ataques, em Junho de 1987, teve lugar o atentado ao centro comercial Hipercor, em Barcelona, em pleno horário comercial, onde morreram 21 pessoas, uma lista que inclui quatro crianças. Tudo em nome da pátria basca. Foi em memória dos menores assassinados que a Guardia Civil baptizou a operação de detenção de Ternera de “Infância Roubada”.

As personalidades que estiveram ao lado, ou dentro, do terrorismo basco procuram agora justificar o passado no quadro de um “conflito” onde, como sempre, existem danos colaterais. De resto, na declaração de dissolução da ETA, datada de 3 de Maio de 2018, não é feita qualquer referência aos mais de 840 mortos e 2500 feridos causados ao longo de décadas de terror, dando sim destaque à necessidade de “activação popular” – leia-se, de branqueamento do passado com o fito de manter vivos e defensáveis os objectivos políticos da organização.

Uma das vozes que leu esta declaração foi precisamente a de Josu Ternera, cuja detenção na semana passada foi encarada como “repressão” pelo partido Sortu, um sucedâneo político da organização terrorista. Igualmente clara foi a candidata à presidência do governo basco pelo E.H. Bildu, coligação onde o Sortu é maioritário, que censurou a prisão do histórico etarra porque aviva “imagens do passado que temos de superar”.

Ainda que Ternera tenha promovido a dissolução junto da militância etarra, tal não deve servir de expediente para apagar o sucedido, nem para remeter as vítimas para um canto obscuro da História. Fazê-lo implicaria legitimar a violência, validar uma doutrina nacionalista de ódio, favorecer futuras agressões, desrespeitar o sofrimento das vítimas e, não menos importante, deixar sem resposta mais de 300 homicídios que permanecem sem autor material identificado.

Em vésperas de eleições europeias, impera a preocupação com extremismos e nacionalismos, cuja ascensão provoca os piores temores sobre o futuro da democracia e do Estado de Direito. É lamentável que as razões e o zelo da preocupação actual nem sempre sejam extensíveis à ETA, expressão de um nacionalismo violento que matou centenas de pessoas em território europeu e que está hoje instalado em instituições públicas através das quais defende a libertação de indivíduos condenados por homicídio e terrorismo, normalizando a violência à posteriori.

Para precaver reincidências, importa chamar as coisas pelos nomes. No que respeita à ETA, as palavras “rebeldes” e “separatistas” são equívocos que têm de ser evitados.