A situação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é gravíssima. Sabemos isso porque não há notícia de que tenha sido uma das instituições a que Fernando Medina recorreu para ajudar a maquilhar as contas públicas. O antigo Ministro das Finanças rapou os cofres da Águas de Portugal, da NAV e da Casa da Moeda, mas não se deu ao trabalho de ir à Santa Casa. Já sabia que ali não se safava. É como aquelas casas que não são assaltadas porque o gatuno vê o símbolo da Prosegur e passa à frente. Na Santa Casa o Ministro foi afugentado pelo símbolo da Prejuisegur.

Pelos vistos, para colocar a dívida abaixo dos 100% do PIB, Fernando Medina teve de partir todos os porquinhos-mealheiros espalhados pelo Estado. Já há membros do novo governo a meter férias, só por causa da estafadeira que foi voltar a arrumar as almofadas nos sofás, depois da equipa de Medina os ter revirado à procura de trocos perdidos. Só tenho pena dos toxicodependentes que costumam vaguear nas redondezas do Ministério das Finanças, que nos últimos meses deixaram de encontrar aquela moedinha esquecida na máquina dos parquímetros. Tudo vazio. Quando, há uns anos, António Costa falou na vaca voadora, devia ter-se explicado melhor: não era uma vaca que simbolizava o êxito do Governo, era uma vaquinha. Há relatos de gestores públicos a desligarem as notificações telemóvel, por causa dos pedidos de dinheiro que as Finanças mandam por Mbway.

Portanto, é muito mau sinal quando o chapéu de Fernando Medina já nem se digna a fazer peditório na Santa Casa. De repente, os portugueses descobrem chocados que a Santa Casa dá prejuízo. Como é que uma instituição como a Santa Casa perde dinheiro? Se gere o monopólio dos jogos sociais, se é dona de um património imobiliário vastíssimo (há até quem lhe chame Tanta Casa), se recebe doações de particulares, como é que ainda assim consegue falir? É um espanto racional, mas um espanto que só se aceita em pessoas que nunca viram aquelas séries da Netflix sobre tráfico de droga. Basta assistir a uma ou duas para perceber que o negócio começa a correr mal quando o traficante, em vez de se limitar a vender, resolve experimentar o produto. Foi o que aconteceu à Santa Casa. Durante décadas foi dealer de jogos de azar, fartou-se de fazer dinheiro a impingir cautelas e raspadinhas. Tudo corria bem, ninguém se aborrecia (tirando quem ia comprar jornais às sextas-feiras e apanhava a tabacaria apinhada de gente a registar boletins), até ao dia em que a Santa Casa achou bem meter-se ela própria a apostar em actividades com probabilidades baixíssimas como hospitais semi-falidos, NFT, bitcoin ou totolotos no Brasil. A partir daí, descambou. Se a Santa Casa não tivesse sido apanhada a tempo, o próximo investimento ia ser em Herbalife. E, felizmente, ninguém na administração tinha um filho que pudesse explicar como funcionam os esquemas de Ponzi. Caso contrário a Santa Casa tinha aproveitado os conhecimentos no mundo dos cemitérios e ido ao jazigo buscar a D. Branca, só para entrar numa daquelas pirâmides ruinosas.

Desde a sua fundação, a Santa Casa acolheu bebés abandonados pelas famílias. Havia, em cada Misericórdia, uma porta giratória, a roda dos expostos, que os pais usavam para depositar o recém-nascido sem serem vistos por quem o recolhia. Parece que, à falta de bebés, agora a Santa Casa aceita qualquer ideia enjeitada que alguém deposite à sua porta. É compaixão dispendiosa. Em vez de caridade, é caríssimidade.

A minha grande dúvida é a vontade da Santa Casa em internacionalizar-se. Qual a génese desse projecto? Normalmente, quando uma organização está na bancarrota, “internacionalização” é um eufemismo para fuga dos administradores à justiça. “Quem se internacionalizou para a África do Sul foi o João Rendeiro”. Mas não parece ser esse o caso. No seu site, a Santa Casa afirma: “A nossa missão, desde a fundação da nossa casa, assenta na realização da melhoria do bem-estar dos cidadãos, no geral, mas principalmente dos mais desprotegidos”. Isso significa que os últimos administradores da Santa Casa achavam que já não há desprotegidos em Portugal e teriam de os ir arranjar ao estrangeiro? Se achavam, vão deixar de achar. Ou muito me engano, ou em breve a maior parte vai ficar desprotegido no desemprego.

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