A literatura epistolar tem uma grande tradição no nosso país. Desde a Carta de Pêro Vaz de Caminha a D. Manuel até às Cartas do Padre António Vieira. Porém, atrevo-me a arriscar que a mais conhecida obra deste género são as pungentes Cartas Portuguesas, que soror Mariana Alcoforado, uma freira portuguesa do séc. XVII, terá enviado ao seu apaixonado, o Marquês de Chamilly. Quer dizer, a mais conhecida obra deste género até agora. É que, desde a semana passada, a correspondência mais famosa da literatura portuguesa passou a ser a trocada entre a avó de Mariana Mortágua e o seu senhorio sobre o contrato de arrendamento.

Segundo a autora, trata-se de uma carta hipotética que a sua avó poderia, eventualmente, se tivessem sido reunidas determinadas condições que à partida não se punham, ter vindo a receber. Um cenário impossível cuja mera sugestão de possibilidade em abstrato foi suficiente para sobressaltar a idosa. Ou seja, na realidade nem se trata de literatura epistolar, mas sim de literatura epistoléria, na medida em que foi tudo uma grande treta e a tal carta nunca chegou. Se as cartas de amor são ridículas, as cartas de senhorios fantasiadas são o quê? Tema de crónica humorística, graças a Deus.

Em desespero de causa, há políticos conhecidos por jogarem a carta da família. No debate com Luís Montenegro, Mariana Mortágua sentiu-se ainda mais acossada e jogou a carta da carta da família. Não a censuro. Também já usei a minha avó como desculpa, inventando um aniversário para não ter feito os TPC. Mortágua não se preparou para o debate, teve de recorrer à avó. Fê-lo alegando a missiva que a avó poderia ter recebido, que é uma formulação política para o argumento adolescente conhecido como “se a minha avó tivesse rodinhas era uma trotinete”.

Percebo a intenção de Mortágua. Não estava a referir-se mesmo à sua avó, mas às avós portuguesas em geral. É como o Doce d’Avó dos restaurantes. Sabemos que não foi mesmo a avó do proprietário que esteve a triturar a bolacha Maria para misturar com o leite condensado. Não é preciso. Até porque isso não altera em nada o facto de a mistela ser demasiado enjoativa.

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É um artifício retórico perfeitamente aceitável. Um arquétipo, como aquela recém-licenciada, engendrada pela IL, que tem de emigrar para fugir aos impostos. Ou o mandrião de perfeita saúde que arrebanha vários subsídios e não trabalha, criado pelo Chega. Ou o utente apontado nos comícios do PS, que tem a felicidade de ter casa barata, apanhar a urgência sempre aberta, de ter médico de família, o filho numa escola pública onde não chove e os professores não faltam, que só anda de autocarros que nunca se atrasam.

Como os outros partidos, o Bloco imaginou esta personagem. Podia ter corrido melhor, mas foi apanhada. Talvez tenha exagerado. Fugiu-lhe o pé para o clichênelo. Ainda esperei que Mariana Mortágua se justificasse com “a carta só não chegou porque a direita privatizou os CTT, que agora estão uma porcaria”, mas não foi capaz desse golpe de asa. Há a falácia do homem de palha, esta é a do farto de palha: Mortágua tomou-nos a todos por burros.

Mas não consigo levar-lhe isso a mal. Também uso o mesmo estratagema. A diferença é que invento personagens e atribuo-lhes comportamentos ridículos estereotipados, enquanto Mariana Mortágua inventa comportamentos odiosos estereotipados. É por isso que, enquanto contava a sua historinha (e nas vezes em que já veio explicar a aldrabice), se fartou de dizer que era uma lei cruel. Cruel, cruel, cruel.

Ora, uma lei cruel não é uma mera má lei, é uma lei má. É perfídia legislativa, feita de propósito para aleijar. Vejamos, quando se usa “cruel” para caracterizar alguma, normalmente é porque há malvadez associada. Por exemplo, D. Pedro I era “O Cruel”. Recebeu esse cognome pela forma como se vingou dos assassinos de Inês de Castro (mandando arrancar-lhes o coração e servindo um banquete ao mesmo tempo), mas também por outras marotices, que incluíram capar um escudeiro que o desagradou. E Cruella de Vil, que queria esfolar uma ninhada de dálmatas para fazer um casaco de peles? Já para não falar da personagem da canção “És cruel”, dos Ena Pá 2000, que meteu a sua filha num bordel e enforcou o seu caniche com cordel? Cruel não é ápodo que se use de ânimo leve. É a esta companhia malévola que Mariana Mortágua junta o PSD e o CDS. D. Pedro e os algozes, Cruella e os cachorrinhos, Manuel João Vieira e o caniche, Montenegro e os velhos. Todos sinistros torcionários.

Montenegro e a AD não são adversários, são inimigos. Representam o Mal e o Bloco não está a disputar eleições com ele, está a combatê-lo para salvar Portugal. O que levanta a questão: se é esse o caso, não estarão a fazer pouco? Quer dizer, estamos perante a maldade em estado puro, perante a destruição iminente de tudo o que é bom e justo e belo, e o que é que o Bloco anda a fazer? A anunciar medidinhas nos salários? Restrições no alojamento local? Dedicação exclusiva no SNS? Isso é tudo muito lindo, mas ao pé dos enviados de Satanás são bagatelas. É como se Luke Skywalker e Han Solo, em vez de se concentrarem em destruir a Estrela da Morte, andassem entretidos a fazer arruadas em Tatooine ou a prometer aumentos de 3% nas pensões dos Ewoks. Para combater o mal, basta combater o mal. E evitar dispersar energia com outras lutinhas. Não se percebe a atitude do BE.

A não ser que, como a carta, a “crueldade” também seja aldrabice. Confesso que dessa não estava à espera.