É difícil imaginar a cidade do futuro, a sua arquitetura, paisagem urbana e espaço público, com todas as inteligências, reais e virtuais, e respetivos dispositivos no terreno. Digamos que a cidade da conexão e cooperação entre espaços urbanos e rurais só agora começa. Durante demasiado tempo praticámos uma política dual e dicotómica que puniu severamente as relações cidade-campo, urbano-rural e moderno-tradicional. Agora, as grandes transições do século XXI – climática, energética, ecológica, digital, laboral, social – e o seu crescente hibridismo, exigem-nos que reconsideremos este conjunto de relações, desta vez em nome de uma sociedade mais eclética, criativa e colaborativa, dos seus bens comuns, da gestão de recursos partilhados e dos direitos dos ausentes, em especial as gerações vindouras.

Neste contexto, está em questão a arquitetura do espaço público na cidade do futuro e o modo como a digitalização do simbólico e as artes digitais são transportadas para esse espaço público. Vejamos alguns aspetos dessa malha reticular induzida pela conexão e cooperação entre espaços-territórios, que também se podem estender a novas multiterritorialidades como a cidade-região e a região-cidade.

Os novos espaços públicos de conexão e cooperação

Como disse, com as grandes transições desta década, a cidade, tal como a conhecemos, está em plena ebulição porque o hibridismo é sempre uma fonte de liberdade criativa, desde logo na libertação de novo espaço público. Senão, vejamos:

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  • Em primeiro lugar a arquitetura do espaço público em resultado das novas formas de mobilidade urbana e, bem assim, de uma ecologia muito mais inspiradora e feita a pensar na condição humana; teremos assim mais espaço público à nossa disposição para redesenhar a paisagem urbana;
  • Em segundo lugar uma nova arquitetura digital, em resultado do processo de digitalização das atividades que transforma os modelos de negócio, a configuração física dos espaços comerciais e sua redistribuição no espaço-território envolvente; como resultado, teremos uma relação mais diferenciada com os espaços periurbanos e suburbanos e, também, com o espaço rural;
  • Em terceiro lugar uma nova arquitetura urbana, em resultado da nova matriz energética e da transformação do espaço edificado, para responder a exigências de eficiência energética mas também a novos usos urbanos como a agricultura urbana e vertical; teremos assim mais espaço público para formar comunidades energéticas locais e uma agricultura acompanhada pela comunidade;
  • Em quarto lugar a arquitetura dos espaços socio-laborais, em resultado da economia digital, do teletrabalho e do nomadismo digital, abre novas vias para os transportes públicos e privados e novas localizações dentro e fora do tradicional espaço urbano; teremos assim mais soluções colaborativas à nossa disposição;
  • Em quinto lugar a nova arquitetura da relação cidade-campo, em resultado do papel das infraestruturas ecológicas e rede de corredores verdes no modelo de conexão urbano-rural e na delimitação de novos espaços públicos de ligação, de acordo com o princípio de mais campo na cidade e mais cidade no campo; assim, o parque agroecológico municipal ou intermunicipal será o shopping do século XXI;
  • Em sexto lugar a arquitetura dos espaços colaborativos de ciência, cultura e criatividade, em resultado do lugar central que doravante representarão na cartografia territorial da cidade do futuro; teremos à nossa disposição um leque muito variado de opções de espaço público no interface desta arquitetura multiterritorial;
  • Em sétimo lugar, a arquitetura das redes de proteção social e inclusão, em especial no desenho dos serviços de proximidade e ambulatórios em benefício dos grupos de cidadãos mais desfavorecidos; teremos à nossa disposição muitas soluções de mobilidade para a sociedade sénior e outros grupos mais frágeis;
  • Em oitavo lugar a arquitetura do ambiente empresarial, não apenas na conexão dos tradicionais parques empresariais e zonas industriais mas também no mapeamento inteligente das fileiras e cadeias de valor que compõem a cidade-região empresarial e, ainda, nas infraestruturas de acolhimento e aconselhamento que informam a nova economia digital;
  • Em nono lugar a arquitetura da proteção civil e comunidades de risco, desde logo nas ações de mitigação e adaptação às alterações climáticas mas mais especialmente na pedagogia ecológica e energética relativa às políticas de descarbonização, economia circular e biodiversidade; teremos, assim, à nossa disposição, vários programas com esta finalidade especifica, tanto no PRR como no próximo PT 2030;
  • Em décimo lugar a arquitetura da participação pública, em resposta às grandes transições do século XXI, irá obrigar à reorganização do espaço da academia, dos meios de comunicação social, do espaço associativo e à reforma geral da administração pública; esta é uma tarefa tão exigente como necessária e muito do sucesso das grandes transições dependerá desta reorganização fundamental.

As artes, a digitalização do simbólico e o capitalismo cultural digital

Mais espaço público disponível e, também, mais serviços culturais digitais à disposição dos cidadãos. A sequência é conhecida, a industrialização cultural do século XX, a sociedade pós-industrial dos serviços nas últimas décadas do século XX, a digitalização do simbólico e os serviços culturais digitais nas primeiras décadas do século XXI. As consequências são também conhecidas. O hibridismo entre a fileira dos serviços culturais (materiais) e a fileira dos serviços tecnológicos digitais (imateriais) trouxe-nos até ao território do capitalismo cultural digital. Uma explosão de liberdade criativa, em especial para as artes de rua e do espetáculo, a digitalização do simbólico e a economia da cultura, ou seja, para a reinvenção e criação de uma nova economia de serviços culturais. Num primeiro momento assistimos a uma transferência (digitalização) dos serviços culturais convencionais (materiais) para os serviços culturais digitais (imateriais), num segundo momento porém há um acréscimo de interesse e de público pela materialidade das origens e do espírito do lugar. Dito de outro modo, temos de estar muito atentos ao modo como se processa e produz este hibridismo circular dos bens e serviços culturais, pois uma condução inteligente da cadeia de valor pode maximizar os benefícios de ambos os serviços para as cidades e os territórios.

A cidade inteligente e criativa do futuro só pode ser um espaço socialmente construído para o exercício da cidadania plena se assentar num princípio de prudência e bom senso, assim formulado: as tecnologias digitais tornam a cidade mais inteligente, mas é o urbanismo nas suas várias dimensões que torna as tecnologias digitais muito mais inteligentes, humanas e criativas. Neste contexto, o hibridismo ou fusão de que falámos, entre serviços culturais tangíveis e intangíveis, assenta em seis princípios fundamentais:

  • Em primeiro lugar a cidade inteligente e criativa não padece de nenhum determinismo tecnológico e não se confunde com a cidade digital, ou seja, não existe uma auto realização por via tecnológica e digital;
  • Em segundo lugar vamos assistir a uma hibridação das inteligências racional, emocional e artificial e também à formação de comunidades inteligentes em algumas coletividades territoriais;
  • Em terceiro lugar é preciso medir os impactos tecnológicos sobre a cidade e a sua pegada ecológica, pois irão condicionar a engenharia das infraestruturas, a arquitetura urbana e o metabolismo da cidade;
  • Em quarto lugar os serviços culturais digitais criarão uma outra estética urbana, isto é, uma cenografia e coreografia muito próprias do espaço público que interagem sobre o modo de condução da cidade inteligente;
  • Em quinto lugar a conectividade digital, por via de plataformas made in, aplicativos e o uso intensivo de smartphones tornará possível e viável uma certa coprodução da cidade e mesmo a realização de um novo contrato social com os cidadãos, com base justamente num leque muito alargado de serviços materiais e imateriais;
  • Em último lugar tudo o que dissemos antes coloca face a face duas cidades e duas dinâmicas urbanas, a cidade centralizada e a cidade coproduzida; ora, esta dupla dinâmica precisa de ser absorvida pela governação política da cidade de forma muito inteligente e criativa.

Nota Final

Em síntese, arquitetura e espaço público, tecnologia e transformação digital, ecologia e paisagem global, criatividade e cultura, estas são as várias facetas da cidade inteligente e criativa do século XXI. Em cada um destes vetores nós acrescentamos metabolismo urbano à cidade inteligente que, assim, se torna mais compreensiva e complexa e também mais humana. Duas notas finais para realçar a importância de novos espaços públicos de conexão e cooperação.

A primeira diz respeito à região-cidade, a rede policêntrica de cidades e vilas, aquilo que eu já designei como a Cidade CIM, a cidade da nossa imaginação no que diz respeito ao desenho de bens comuns colaborativos e à gestão de recursos partilhados entre vilas e cidades. As Comunidades Intermunicipais (CIM) têm aqui um papel de destaque.

A segunda nota diz respeito à conexão dos espaços interiores da região-cidade. Refiro-me à formação e articulação de sistemas territoriais localizados, por exemplo, os sistemas agroalimentares locais (SAL), os sistemas agroflorestais (SAF), os sistemas agroturísticos (SAT) e os sistemas agropaisagísticos (SAP). Esta geoeconomia dos sistemas territoriais localizados funciona atualmente em ordem dispersa e sem economias de rede e aglomeração, está pois na hora de um novo sistema de cartografia e mapeamento territorial que é, na atual conjuntura, especialmente adaptado à administração da Cidade CIM, tanto mais quanto delimita e estimula uma nova rede de espaços públicos intermunicipais da maior relevância. Voltarei a este assunto em próximos artigos.