Voltamos a debater a eutanásia, no seguimento da tramitação do correspondente projecto de lei por parte do Governo espanhol. Os argumentos são conhecidos. Voltou-se a sublinhar que essa prática contradiz o ethos médico, tal como se formula desde Hipócrates: antes de tudo, não fazer dano. Consequentemente, curar, aliviar e consolar. Há razões de ciência e consciência para nos opormos à pretensão de converter o médico em carniceiro. Se nunca esta praxis se justificou, o recente desenvolvimento da medicina paliativa torna-a ainda mais rejeitável: a suposta “procura social” que invoca o Governo para justificar a lei, expressa no fundo a necessidade de cuidados paliativos. Onde estes se aplicam, ninguém quer a eutanásia.

Com este texto, proponho-me abordar algum aspecto menos presente no debate actual, partindo das palavras do escritor alemão Heinrich Böll.

Heinrich Böll e o seu diagnóstico

Nascido em 1917 em Colónia, Heinrich Böll é um dos maiores expoentes da narrativa alemã do pós-guerra. A sua família – pai trabalhador com mulher e oito filhos – arruinou-se durante a grande depressão dos anos vinte e trinta, o que marcou a sua infância e adolescência. A essa experiência inicial sobre a dureza da vida somar-se-iam a Segunda Guerra Mundial e os anos que lhe seguiram: foi soldado e prisioneiro de campo de concentração.

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Böll tornou-se porta-voz autorizado das vítimas do desastre: converteu-as em protagonistas da sua obra narrativa e ajudou-as como activista social. Assim encarnou como poucos o tipo de intelectual de esquerda, comprometido com os mais vulneráveis e desfavorecidos. Essa opção pela denúncia crítica plasma-se de modo eminente no seu romance Retrato de grupo com senhora (1971), decisiva para conceder-lhe o Prémio Nobel da Literatura em 1972. Antes, já tinha recebido, em 1967, o prémio Georg Büchner, reconhecendo a sua trajectória.

Com o passar do tempo, foi ampliando o raio do seu activismo, tanto pelo compromisso dos seus temas (energia nuclear, meio ambiente, subdesenvolvimento do Terceiro Mundo) como pelo âmbito geográfico em que actuou (viajou para países como a Bolívia e o Equador, para ajudar no terreno). Não é coincidência que tenha presidido, nos anos setenta, ao Pen Club International.

A sua obra desfrutou de êxito popular. Do seu romance mais difundido, A honra perdida de Katharina Blum (1974), venderam-se três milhões de exemplares. Böll não conta, hoje, com muitos leitores, nota-se que a sua literatura está muito marcada por um determinado ambiente social e que o mundo mudou muito desde então, mas a sua memória permanece viva através de instituições diversas. Por exemplo, o nome da fundação política vinculada ao partido dos Verdes na Alemanha. A cidade de Colónia criou, em 1985, o prémio literário Heinrich Böll e numerosos colégios, ruas e edifícios públicos têm o seu nome.

Böll foi educado no catolicismo, mas o seu talento fustigador e denunciador também se dirigiu contra a Igreja, que abandonou oficialmente nos anos setenta (na Alemanha existe um imposto religioso específico: deixar de pagá-lo implica o abandono expresso da instituição, registado de modo oficial). Essa rejeição não o impediu de ponderar a relevância da fé cristã na sociedade. Em 1957, escrevia: “Prefiro o pior dos mundos cristãos ao melhor mundo pagão. Num mundo cristão há sítio para os que se veriam deslocados em qualquer mundo pagão: aleijados e doentes, velhos e débeis. Aqueles que o mundo pagão considera inúteis e sem valor, encontram no mundo cristão algo mais que espaço físico: experimentam amor. Recomendo aos meus contemporâneos imaginar como seria um mundo sem Cristo.”

Demografia, economia e saúde

O cenário demográfico do Ocidente adquire hoje um carácter inédito: os maiores de 65 anos superam em número os menores de 15. Isto nunca tinha ocorrido anteriormente. Trata-se de uma consequência da prosperidade económica e do progresso médico. A mortalidade infantil desapareceu na prática, a esperança de vida prolonga-se de modo contínuo e derrotámos as chicotadas clássicas da humanidade (fome, peste, cólera). No entanto, a melhora objectiva da nossa saúde pode conviver com uma penetrante sensação de vulnerabilidade: nunca tanta gente se sentiu tão doente e nunca se gastou tanto em saúde. Mas grande parte das patologias que nos afligem estão ligadas a estilos de vida insanos: sobrepeso e obesidade, adições – tabaco, álcool, substâncias de drogo-dependências –, doenças sexualmente transmissíveis, stress, depressão, ansiedade, etc.

O Estado social e de bem-estar compromete-se a garantir a saúde e a cuidar dos seus cidadãos desde o berço até à sepultura. Essa promessa, contida no relatório Beveridge dos anos quarenta, tornou-se insustentável. A despesa médica e farmacêutica cresce sem parar, a saúde converteu-se na primeira despesa nos orçamentos de Estado. Se a isto somarmos o pagamento das pensões – para não falar nos subsídios de desemprego –, a bancarrota das finanças públicas só se poderá evitar endividando as gerações futuras. Os ocidentais deixam de trabalhar relativamente cedo e têm pela frente uns vinte anos de vida como reformados. Durante grande parte desse tempo vamos desfrutar de umas condições de vida bastante saudáveis, que nos permitirão continuar activos de diferentes maneiras: fazer de avós, viajar, cultivar gostos. Finalmente, ficaremos doentes e é justamente nesse trecho final da vida que daremos lugar a uma considerável despesa sanitária. Se a vida se encurtasse apenas alguns anos, a poupança económica seria fabulosa.

Brutalidade neopagã e mensagem cristã

Não surpreende que neste inquietante contexto económico e sanitário reapareçam a eutanásia e algumas condutas da antiguidade clássica. Devemos muito à Grécia e a Roma, mas aqueles mundos eram cruéis e sem misericórdia: exposição de recém-nascidos, desprezo pelos débeis – pobres, viúvas, órfãos, anciãos –, escravatura. O cristianismo melhorou a situação dos desfavorecidos e aí está, justamente, uma das razões do seu êxito e da sua rápida difusão. Quando se produzia alguma epidemia e os sãos – médicos incluídos – fugiam das cidades, abandonando os infectados à sua sorte, os cristãos cuidavam dos seus doentes e também dos pagãos: não havia limites para o exercício da sua caridade. Esse ethos levou gente como Basílio, o Grande, a fundar, em 369, nos arredores de Cesareia, o primeiro hospital de que se tem notícia histórica: Basileias. Tratava-se de uma autêntica cidade, que acolhia tanto doentes como pobres. São Basílio passou à História como um grande teólogo, mas também tinha estudado Medicina em Atenas e entregou-se ao cuidado dos mais desprezados, aqueles que o mundo descartava e punha de lado. Ele mesmo recebia em pessoa os leprosos, dando-lhes um beijo de boas vindas e oferecendo-lhes todo o tipo de cuidados. O caso de Basílio não foi, antes pelo contrário, um caso isolado: apenas o trouxe à colação a título de exemplo. Até ao dia de hoje, a Caritas é um elemento essencial da mensagem cristã de serviço (diakonia), junto da proclamação da palavra e da liturgia (kerigma e liturgia).

Não é imprescindível invocar uma fé em Jesus Cristo para se defender a vida humana frágil ou terminal. Há uma ética e uma boa prática médicas inspiradas em razões de simples humanidade. Contudo, é ao mesmo tempo claro que a pertença comum à espécie Homo Sapiens Sapiens não basta para excluir cálculos utilitaristas. O que nos impedirá de eliminar idosos improdutivos ou jovens e meninos com deficiência? A fraternidade humana universal tem sentido se se baseia numa filiação partilhada. A dignidade humana só pode aspirar a um valor absoluto se o Homem é imagem ou reflexo do Absoluto, filho de Deus.

No nosso mundo observam-se tendências contraditórias, paradoxos autênticos. Enquanto soa o alarme do abandono e mortalidade dos idosos às mãos da Covid-19, o Governo tramita por via da urgência – sem debate social – a lei da eutanásia. Estava chamada a ser a primeira lei do Governo Sánchez (como se explica essa pressa?). A pandemia trocou-lhes os planos e parece que o Governo quer recuperar a todo o custo o tempo perdido. O neopaganismo convive com (os últimos?) rastos de cultura cristã numa surpreendente mistura. Queremos ir realmente nessa direcção? Seria bom escutar o conselho de Heinrich Böll e tentar imaginar como acabaria por ser o mundo sem Deus.

Artigo publicado originalmente no Diario de Navarra, a 16 de outubro de 2020, a propósito do processo da lei da eutanásia em Espanha. Tradução de António Vieira da Cruz.