Em setenta anos de História pode acontecer muita coisa. Certamente que estes últimos setenta anos desta Humanidade, serão os setenta anos mais velozes e mais voláteis que já conhecemos. Perante toda a velocidade que a vontade dos homens trouxe a este mundo, uma constante manteve-se, Sua Majestade Isabel II. Sabemos bem, o quão nos confortam as constantes.

Aquando da sua ascensão ao trono em 1952, Isabel II teve como primeiro chefe do seu governo a figura lendária de Winston Churchill, um nome mais do que estabelecido no quadro dos grandes líderes mundiais à data. Dois dias antes de ser chamada para junto do Pai, Isabel II empossou uma nova chefe do governo, Liz Truss. Winston Churchill nasceu em 1874. Liz Truss em 1975. Um século de nascimento, separam o titular inaugural de um governo de Sua Majestade ao último. Este dado bastante curioso, que parece uma provocação do destino, ajuda-nos a compreender a grandiosidade temporal do seu reinado.

Quando foi coroada, Estaline ainda liderava os destinos da União Soviética, a varíola ainda era um grande flagelo de saúde pública e as notícias do mundo que nos entravam casa a dentro eram ainda transmitidas a preto a branco. Quem haveria de dizer que esta mesma monarca seria a mesma a presenciar a ascensão da inteligência artificial? Um monarca detentor de um reinado tão extenso e tão significativo para a nossa cultura global, só pode ser reconhecido como alguém grande. Como Boris Johnson frisou e bem no seu discurso de condolências nos Comuns, Isabel II deverá ser conhecida por gerações vindouras como Isabel, a Grande.

Tendo em conta todo este capital social, ela, como deveria ser a própria monarquia, sempre foi vista como alguém de fora deste mundo. Gerações e gerações ficaram tão habituadas à sua presença e à sua constância, que nos parecia quase impossível que ela um dia nos deixasse, como uma mãe ou uma avó, que apesar de distante nunca abandona os seus filhos e netos. É este “ethos” familia, que confere à Monarquia uma aura de naturalidade, que nos parece tão estranha, mas ao mesmo tempo tão fascinante quanto poderosa.

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À data do funeral de S. M. ligámos a televisão e testemunhámos em primeira mão uma relação entre o povo britânico e a sua monarca, tão natural como um filho que chora a morte de sua mãe. O cerimonial e a estética captaram o nosso imaginário e desengane-se quem ache que devem ser temas alheios na Razão de Estado, mas aquilo que realmente nos fascina é a religiosidade cívica daquele povo, reflectida nas filas de quilómetros para reverenciar e orar aquela que foi a monarca de gerações.

Uma certa elite de analistas e comentadores, desconhecedora e preguiçosa que vive na bolha dos lugares-comuns, chama a isto de “anacronismo”, “ideia do passado”, entre outros chavões. A meu ver, é tão irresponsável quanto ignorante, desvalorizar aquilo que está diante de nós. Podemos não concordar. Podemos até repudiar. Mas seria tolice pintar aquela comoção a que assistimos nas ruas de Edimburgo, Londres e Windsor,  meramente como fascínio turístico. Ali, entre aqueles fiéis súbditos, vive e respira um conjunto de valores que vencem a morte. Valores como a sobriedade, a  descrição, o sentido de dever e a religiosidade. Vivemos pelo menos 70 anos com estes valores.

 O reinado de Isabel, a Grande, foi marcado por um sentido de dever que nos é completamente alienígena e surreal. A sua sobriedade e a sua descrição conferiram à instituição da Coroa, uma aura de robustez e de resistência, que facilitou o papel de desempenhar um poder intemporal no mundo temporal. Tarefa hercúlea, acreditem. Quando falamos em monarcas constitucionais em pleno século XXI, falamos em pessoas com o poder muito reduzido, quando comparado com o dos seus antepassados e que ainda assim, precisam de prestar contas a uma opinião pública cada vez mais volátil, polarizada e facilmente descontente. Na era dos ecrãs, não é praticamente impossível estas pessoas encontrarem liberdade a não ser na intimidade do sono.

Sua Majestade provou que para um estadista é possível servir sem interesse, quando (no seu caso) se deixa a Coroa vencer a batalha interna contra o Ego. Tal disposição é tão rara de se encontrar nos dias de hoje que quando olhamos à nossa volta não há nada que se compare a isto. Não há ninguém que a rivalize. Esse será o desafio de Carlos III.

Lembre-mo-nos de que o actual monarca, sobe ao trono com 73 anos de preparação às suas costas. Se há alguém que está preparado para navegar as tempestuosas águas políticas e sociais deste reino em constantes convulsões, é ele. Só ele, porque assim dita a Lei, é que tem o direito a preservar e a conservar o edifício constitucional britânico, assente nas matrizes reais e parlamentares. Possivelmente, arrisco-me a dizer, nunca houve homem mais adequado para a posição neste momento. Num período em que a agenda ecológica parece dominar cada vez mais a discussão pública, Carlos III ascende ao trono como um dos mais antigos ecologistas da sua geração. A sua presença na causa ecológica e conservadora remonta a um tempo muito anterior aos actuais activistas climáticos que vêm no radicalismo a resposta mágica para todos os problemas que nos assolam.

E assim continua. Serena e tranquila a jornada da Coroa. Thank you Ma’am. God Save The King.