O Serviço Nacional de Saúde está a desfazer-se à nossa frente e perante a nossa impotência. Há urgências a fechar e médicos insuficientes nos hospitais de todo o país. Faltam pediatras, psiquiatras, obstetras e ginecologistas. Em várias especialidades, os concursos abrem e ficam vazios, com as vagas por preencher. Já não se trata apenas dos mais de um milhão de portugueses sem médico de família, um número velho e repetido. A epidemia de covid, por encarregar especialistas em Medicina Geral e Familiar de acudir aos doentes com testes positivos, subiu a escassez para quase quatro milhões de portugueses sem acesso a um médico de família, números de Fevereiro deste ano recolhidos na página da Ordem dos Médicos. Não estão a ser vistos os diabéticos ou os insuficientes cardíacos a quem foi ajustada a medicação e precisam de ser avaliados; nem estão a ser garantidas as primeiras consultas a todas as grávidas e recém-nascidos.

Desamparadas, as pessoas olham em volta à procura de responsáveis e explicações. Há quem aponte o dedo aos médicos. Há quem acuse “os privados”, porque “provocam a subida de preços”, porque “seduzem os médicos” levando-os a abandonar o serviço público. É por isto que as cabeças radicais queriam impor o regime de exclusividade obrigatório. Há quem diga que temos um problema de “má gestão”. Há quem culpe a esquerda ou a extrema-esquerda, por governar o SNS com base em decisões “ideológicas”. A derrocada do SNS é a consequência inevitável de dois processos; um mais longo e estrutural, outro mais recente, nascido das circunstâncias, mas com o mesmo efeito devastador.

O primeiro processo foi o progressivo desajuste entre a economia e a educação, ou, mais exactamente, o ensino superior. Sobretudo nas áreas técnicas, as universidades portuguesas estão hoje muito perto do nível médio das universidades europeias – não se comparam com as melhores, como Oxford ou Cambridge, mas são equivalentes às universidades razoáveis na Alemanha, na Holanda, em Itália, no Luxemburgo ou em França. Os cursos são reconhecidos, alguns são até prezados, e os alunos saídos das nossas universidades competem em pé de igualdade por empregos na Europa.

Estes alunos empenharam-se a estudar para conseguir um curso superior. Repito, porque já estou à espera das habituais confusões: falo das áreas técnicas, das chamadas ciências exactas, dos engenheiros, informáticos, médicos, enfermeiros, conhecimentos que se podem medir. Entram praticamente ignorantes e saem do outro lado, ao fim de uns tantos anos, muito acostumados a fazer exames, a responder pelo que sabem, a aperfeiçoar sistemas e a lidar com a competição. Durante décadas, ouviram repetir que se acabassem o ensino superior teriam bons empregos, com bons salários. Os nossos fúteis governantes criaram neles essa expectativa.

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Afinal eles esforçaram-se, cumpriram a parte que se esperava deles, e no fim de contas esta economia não os pode absorver. Ou aceitam empregos abaixo das suas habilitações, e com salários inferiores, ou emigram. Os melhores, emigram.

O nosso Estado Social, e em particular o Serviço Nacional de Saúde, funciona pelas regras da função pública. Quer dizer que ninguém ganha salários muito altos, se compararmos com o resto da Europa; mas há muitos funcionários. Quer dizer também que não se pode castigar quem trabalha mal; e, pior ainda, não se pode premiar quem trabalha bem. Os nossos queridos sindicatos, ou seja, os partidos comunistas, não admitem uma componente de mérito na progressão nas carreiras. O estímulo ao bom cumprimento dos serviços anda a rasar as ervinhas do chão.

Por estarmos integrados na União Europeia, temos um sistema fechado a tentar sobreviver numa economia aberta. Os licenciados, médicos e enfermeiros e técnicos de saúde, emigram. Encontram empregos melhores, com salários que aqui ninguém lhes pode pagar. Esta emigração é racional e praticamente impossível de conter.

A única possibilidade seria desenvolver a economia. Para isso precisávamos de impostos mais baixos, ou mais razoáveis; de estabilidade fiscal; de uma justiça rápida; e de licenciamentos simples e previsíveis. Isto para começar, já que os governantes não deviam apenas ouvir os ciclistas, os sobressaltados das “causas”, os sabichões de “género” e os atletas de fundo das “alterações” climáticas; convinha ouvirem os investidores. Portugal não produz sem liberdade económica, ou seja, mais concorrência, menos dependência do Estado e dos poderes públicos. Nada disto se faz com a esquerda, porque nenhum partido executa políticas que vão contra os seus próprios interesses.

O segundo processo letal foi a montagem da geringonça, em 2015. A extrema-esquerda tem o seu poder assente no domínio dos funcionários públicos e dos sindicatos. O PS precisou da extrema-esquerda para governar. E vai precisar mais vezes, sabe que a maioria absoluta é transitória e reserva a possibilidade de futuras alianças com os partidos radicais. Eles exigiram o fim das parcerias na saúde e o PS aceitou. O exemplo mais escandaloso é o Hospital de Braga, que funcionava como um relógio, mas hoje não recebe partos porque tem as urgências fechadas.

De maneira que não, o PS não toma decisões “ideológicas”, no sentido poético e apaixonado que se costuma dar ao palavrão. Até pela menoridade da direita, o PS exerce uma regência à vista, confusa mas fria, cuja rudeza procura a manutenção no poder. O PS comprou aos comunistas o direito a governar. Em troca, aceitou desfazer o SNS.