Quando, em 1725, Vivaldi publicou Il cimento dell’armonia e dell’invenzione – conjunto de 12 concertos para violino, cordas e basso continuo cujos quatro primeiros são hoje mais conhecidos como As Quatro Estações – há já muito que a lenta revolução dos éones desenhava a linha do horizonte que, resoluta e imperitura, a sombra de Pedro Nuno Santos havia um dia de rasgar.

E eis que, no passado Sábado, dia de êxtase e consagração na comunidade do Rato, os garbosos bigodes de Ascenso Simões, a pelúcia de Miguel Costa Matos e a varonil penugem de Ana Gomes, de cíngulo apertado até ao limiar do prazer, puderam enfim oferecer ao profanado século a píxide onde dormitavam os sacros aljôfares que desde o princípio do mundo a divina providência preparara para redenção da cafraria: apoio frenético e entusiástico do pior socratismo; despachos nocturnos na ausência do Primeiro-Ministro, subsequente revogação e respectivo enxovalho público; discussão e aprovação por whatsapp, com ligeireza infantil, de principescas indemnizações; milhões enterrados na TAP com a displicência de uma noite de arrotos, Monopólio, Super Bock e tremoços; uma ferrovia num estado mais decrépito do que as chulipas em que assenta a linha do Tua, para já não falar da farronca adolescente com que ameaçava pernas de banqueiros alemães enquanto vendia o Porsche do papá para não esmorecer o élan canhoto.

Longe vão os dias em que a citada peleja vivaldiana entre a harmonia – a tradicional técnica compositiva – e a invenção – o inato poder criativo – se via vertida, em proporção e equilíbrio, nas partituras do Prete Rosso. Hoje, percursos como o do catraio sanjoanense – rescendendo ponderação e maturidade dignas de um presidente de uma qualquer Associação de Estudantes – em vez de repulsa, suscitam pios arrebatamentos cujo frémito confirma que o PS, de madre caída, prescindiu definitivamente do arrojo de criar futuros para reivindicar como sua a missão de inventar passados.

E eis como os seus devotos, contemplando a criatura como uma sagrada custódia, de mãos postas, areando-lhe as faces e prometendo-lhe joelhos ensanguentados, o recebem com flabelos, três ductos e dois ictos de turíbulo e naveta engastada de jaspe, bdélio e ónix, na expectativa de acesso garantido ao tabernáculo onde prebendas, sinecuras, gamelas e feno lhes garantirão ruminação perene, pelo luzidio e a grinalda de mimoso na Feira de Montalegre.

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Estou em crer que um dos mais decisivos contributos socialistas para a moderna filologia terá sido a manhosa transfiguração do antigo significado da invenção (do latim inventio, descoberta, achado de alguma coisa oculta ou desconhecida) em toda e qualquer actividade humana que realiza ou produz algo de novo – mesmo que, como acontece com Pedro Nuno Santos, tudo tresande a bafio, alho e cerveja choca. Na própria noite da entronização, inflamado pelas hostes e pelos odores a suor e testosterona, o petiz não percebeu que a fogosidade com que procurou higienizar o papel que desempenhou nestes 8 anos de metódico, profissional e eficaz empobrecimento nacional, o levou a elucubrar pérolas retóricas de um tal calibre (“não podemos arrastar os pés”, “temos de decidir”, “não está tudo bem”, “há muito que fazer”) que, denunciando o fracasso das soluções governativas que ele mesmo concebeu e de que foi parte activa, ofereceu minutos prime a uma cena que nem Buñuel nem os Monthy Python desdenhariam: uma sala repleta de arrebatados sequazes a aplaudir o discurso que poderia muito bem ser o do líder da oposição que eles juram abominar.

Mas não tomemos por descuido estas inenarráveis mise-en-scène – faz parte do manual estalinista a purga selectiva da memória para que a cada novo dia os inimputáveis de sempre surjam límpidos e purificados pela água baptismal que eles mesmos aspergem. Razão pela qual não tardou muito até a Assessoria de Comunicação o ter plantado no Programa da Júlia – deferente, solícito, pressurosamente engomadinho pela sua “Catarina” – inventando um passado ainda quente: que sim, que o seu discurso de vitória não fora fabuloso, mas pela simples razão de ter sido improvisado. Como se tal fosse crível em alguém que, como dizia o bardo, “Domingo sabe de cor o que vai dizer Segunda-feira”!

Pelo contrário, aquele discurso – bronco, miserável, canhestro e bisonho – é o mais fiel retrato da forma mentis pueril de alguém que, aos 40, continua a escrever convictamente “o meu sonho é ter um país decente”: uma espécie de filho de pai incógnito que Corín Tellado, temendo a ignomínia, deu para adopção; um Martin Luther King de calções que, em vez de Calvino e da King James Version, tivesse concluído sido alfabetizado com as Selecções do Reader’s Digest.

Embora nunca de tal tenha havido registo oficial, diz-se que Vivaldi chegou a ser excomungado por, preparando a candidatura a um lugar na corte de Carlos VI, ter abandonado a eucaristia durante a transubstanciação para anotar uma melodia que, entretanto, lhe ocorrera.

Curiosamente – ou nem por isso – a etimologia desta palavra está relacionada com uma operação de branqueamento: em Roma, os candidatos distinguiam-se por vestirem uma toga branqueada com giz, a candida, que usavam durante todo o período probatório.

Diz-se que as gaspeadeiras do papá estarão já a tratar do assunto.