Será o último argumento que Ricardo Salgado pode apresentar em sua defesa. O documento de março de 2014, que é divulgado em anexo, foi invocado pelo ex-presidente do BES na audição no Parlamento. Para Ricardo Salgado, o exame da PwC para o Banco de Portugal responde à pergunta: Seria o GES o viável? Segundo Salgado, este relatório permite concluir que sim, num prazo de vários anos (dez). O que faltou? Para o ex-banqueiro, faltou tempo.

O plano de reestruturação do Grupo Espírito Santo (GES), elaborado entre o final de 2013 e início de 2014, concluía que a área não financeira do GES seria viável ao fim de um período de dez anos. Este plano apresentava elevados riscos de execução cuja concretização acabou por comprometer os resultados: venda acelerada de ativos, o refinanciamento da dívida de curto prazo, e a necessidade de atrair terceiros para aumentos de capital. Mas no papel, o GES resistia, em grande medida à custa do quanto valia o seu principal ativo, o Banco Espírito Santo.

O plano foi apresentado pela holding financeira do GES, a Espírito Santo Financial Group (ESFG) no quadro do exame conduzido em 2013 pelo Banco de Portugal aos maiores devedores da banca portuguesa. O objetivo era avaliar se estes grupos tinham capacidade financeira e económica para pagar as suas dívidas e em que medida os bancos tinham de provisionar (reconhecer nas contas) imparidades (perdas) para eventuais incumprimentos. ETRICC é um “palavrão” que quer dizer exercício transversal de revisão das imparidades dos créditos concedidos a certos grupos económicos.

A área não financeira do GES foi um dos dez grupos analisados à lupa com a ajuda da auditora PricewaterhouseCoopers (PwC). Neste grupo estavam quatro empresas da área da comunicação social – Controlinveste, Impresa, Ongoing e Prisa (dona da TVI), três construtoras – Soares da Costa, Grupo Lena e Sacyr Vellehermoso (dona da Somague), a Efacec (detida pelo Grupo José de Mello), Artlant (unidade de Sines do grupo químico espanhol La Seda), a SGC de João Pereira Coutinho e a Promovalor, empresa de imobiliário ligada a Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica. Entre os dez maiores devedores, há três grupos de capitais espanhóis.

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A tarefa da PwC foi analisar os planos de negócios apresentados por estes grupos para avaliar a solidez financeira futura. No caso do GES, um dos principais focos de problema detetado a partir de outubro de 2013 foi a Espírito Santo Internacional, a holding de topo da área não financeira que não tinha contas consolidadas, o que permitiu ocultar dívida. O Observador teve acesso ao ETRICC realizado ao Grupo Espírito Santo, na qualidade de maior devedor da ESFG, que por seu turno era o maior acionista do Banco Espírito Santo.

Neste trabalho para o Banco de Portugal, que não é uma auditoria, a Price detetou uma exposição de 1226 milhões de euros da ESFG (BES incluído) ao GES, com referência a setembro de 2013 e à qual correspondia uma imparidade residual. Na sua análise, a auditora sublinha limitações como o não-acesso à gestão de todas as entidades, bem como aos pressupostos em que se basearam os planos de negócios. Realça ainda que o pressuposto base a todo o plano era o refinanciamento da dívida. O exame incluiu a Espírito Santo Internacional (ESI), Rioforte, Opway e a ESFG, onde estavam BES e Tranquilidade. Neste fase a ESI era a cabeça do grupo que controlava 49,9% da Espírito Santo Financial Group e 100% da Rioforte.

Os planos para a ESI e Rioforte

O plano apresentado pela equipa liderada por Ricardo Salgado para a Espírito Santo Internacional tinha como principal finalidade resolver a dívida desta sociedade que em setembro de 2013 estava nos 6,2 mil milhões de euros, já depois de incluídos passivos ocultos. Em marcha estavam já a venda de ativos, a Sodim (que detinha uma participação na Semapa) e a Escom, que não se concretizou. Foi reembolsada uma parte do investimento na Eurofin e estava previsto um aumento de capital, que apenas foi parcialmente realizado.

Mas o essencial do plano previa a transformação da Rioforte na holding mãe do GES, tendo para isso esta sociedade adquirido à ESI os 49,26% da holding financeira, a Espírito Santo Financial Group. Prevista estava ainda uma oferta pública de troca em que as ações da ESFG, cotadas em Lisboa e Luxemburgo, seriam trocadas por ações Rioforte, num valor de 600 milhões de euros. A Rioforte deveria ainda emitir VMOC (valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis em capital de 1100 milhões de euros), dos quais 500 milhões seriam convertidos em três anos. O principal rendimento da Rioforte seriam os dividendos da ESFG, que dependiam muito do BES.

Nestas contas, a dívida de quase seis mil milhões de euros, deveria desaparecer até 2023, com o contributo da venda de ativos como o ES Plaza na Florida, ou Espírito Santo Saúde, cuja dispersão parcial em bolsa se realizou em janeiro de 2014. A sustentabilidade da ESI assentava ainda nos dividendos da Rioforte e a ESFG, mas estava também previsto um aumento de capital de 800 milhões de euros, a subscrever pela família Espírito Santo, via ES Control, mas também por terceiros. O fundo público da Venezuela prometeu investir 500 milhões de euros.

Outra componente muito importante seriam os dividendos da área financeira, pois assumia-se que a ESFG daria quase quatro mil milhões de euros entre 2014 e 2023. Estava igualmente planeada a venda da seguradora Tranquilidade por 700 milhões de euros, valor que só poderia ser atingido em 2016 e mediante o desenvolvimento do negócio em Portugal e fora. Os cálculos apontavam para dividendos da área não financeira de 1546 milhões de euros, permitiriam também reduzir a dívida da ESI. Os principais contribuintes deste cash seriam os negócios do imobiliário e energia.

Os elevados riscos de execução

No total, o plano de negócios da Rioforte previa que esta sociedade gerasse dividendos de 4,4 mil milhões de euros à sua casa-mãe, a Espírito Santo Internacional, entre 2014 e 2023. Para a auditora, a oferta pública de troca, que iria substituir as ações dispersas em bolsa da ESFG por ações Rioforte, tinha “um risco de concretização elevado, na medida em que os ativos do grupo no momento desta operação são a Rioforte (com um equity value negativo de 945 milhões de euros depois de ter comprado a Espírito Santo Financial Group à ESI) e a ESFG. Ao mesmo tempo, se falhasse a emissão de dívida convertível (VMOC), “o grupo aumentaria o risco de refinanciamento em 2014 e, consequentemente, o nível de alavancagem, ficando com uma maior dependência da boa execução do plano de negócios do BES”.

O plano para a área financeira previa que a ESFG recebesse dividendos de mais de dois mil milhões de euros, onde o BES seria o principal sustento graças a uma melhoria muito significativa nas margens financeiras, a uma redução de custos, a uma expansão muito relevante da atividade em Angola. A Price alerta logo para riscos de execução desta meta lembrando que a sua concretização dependeria de dez anos de crescimento consecutivo dos lucros do Banco Espírito Santo. Outro aspeto que merece reservas é a previsão do crescimento de 343% nos depósitos do BESA em Angola, um mercado onde o nível de penetração da banca é muito baixo.

Para a Price, a diminuição de dívida consolidada da ESI em mais de metade (para 2500 milhões) até 2023, “está fundamentalmente dependente” dos cash-flow que se estimam sejam gerados pelas entidades não financeiras da Rioforte e pelo ESFG. Mas a emissão de dívida convertível e a alienação de ativos são absolutamente fundamentais para diminuir a divida de curto prazo que é o maior problema do GES.

Outro aspeto crítico do sucesso e onde foram detetados riscos de execução, foi no previsto aumento de capital de 800 milhões de euros (500 milhões em 2014 e 300 milhões em 2015) no plano de negócios da ESI. Lembrando que o reforço de capital previsto para 2013 não tinha sido todo realizado, a Price reduz esta operação para metade por considerar “que existe risco destes aumentos de capital não se materializarem na plenitude”, não obstante as garantias dadas pela ES Control e a pelo fundo soberano da Venezuela.

A insustentável pressão da dívida

Outra situação que preocupava era a descoberta de mais uma dívida de 315 milhões de euros não prevista neste plano, e para a qual não foi encontrado ativo, o que levou a Price a recear que a ES Control tivesse de fazer um esforço adicional para participar no aumento de capital da ESI. Mais tarde este plano foi mudado para a Rioforte, mas também sem concretização.

Um dos planos de negócios que gerou mais dúvidas à auditoria foi o da Opway, construtora deficitária há vários anos e que tinha já recebido centenas de milhões de euros em suprimentos (empréstimo acionista). A Price considera que o plano de negócios que previa o crescimento para novos mercados emergentes tem um “um risco elevado de execução”. Esta empresa, que hoje se encontra em proteção de credores, é a única da área operacional para a qual a PwC propõe uma imparidade (perda) de 8% na exposição da ESFG.

Há ainda dúvidas relevantes sobre a evolução otimista apresentada para o negócio imobiliário em Portugal, a atravessar então uma crise profunda, a nível de vendas e rentabilidade, o que levou a Price a assinalar elevados riscos na comercialização dentro dos prazos previstos e a impor um haircut (corte no valor) de 20%.

Para testar a viabilidade dos números do plano de negócios, a auditoria pediu análises de sensibilidade para dois cenários de desvio negativo e concluiu: “Mesmo considerando o cenário de desvio superior (mais negativo) o equity (capital próprio) da ESI em 2018 e 2023 continua a ser positivo, fundamentalmente devido à valorização da ESFG”, ou seja da área financeira, ou seja, do BES.

Apesar de todos os riscos, os impactos e haircuts propostos, e que para um horizonte de dez anos variam entre os 2,2 mil milhões e os 3,4 mil milhões de euros, o capital próprio da ESI chega sempre a 2023 positivo, embora seja reduzido de 5500 milhões de euros, previstos inicialmente pelo GES para menos de metade, 2137 milhões de euros, no cenário mais negativo imposto pela Price.

O que podia correr mal, correu

Já na análise da dívida das holdings não operacionais o diagnóstico era mais negro. “Não se perspetiva no curto/médio prazo a redução da dívida para níveis razoáveis, pelo que concluímos que se justifica o reconhecimento de imparidades relativamente à exposição destas entidades. A Price recomendou imparidades de pelo menos 10%, ou até 100% da exposição líquida de colaterais, das dívidas da ESI e ES Resources.

Por ordem do Banco de Portugal, a ESFG provisionou 700 milhões de euros para assegurar o reembolso do papel comercial de empresas não financeiras que tinha sido vendido aos clientes do BES. Ainda assim, e “até ao ano de 2023, consideramos existir um risco de refinanciamento de dívida do Grupo Espírito Santo, na sua generalidade de curto prazo”.

A história dos meses seguintes veio a revelar que os principais riscos identificados na execução plano: venda de ativos, oferta de troca entre Rioforte e Espírito Santo Financial Group, aumento de capital da ESI e emissão de dívida convertível em ações da Rioforte, aconteceram todos. E até um que não estava considerado: a perda de valor do BES, à medida que o banco foi usado para tentar tapar o que corria mal no plano de reestruturação GES. As primeiras conclusões da auditoria forense pedida pelo Banco de Portugal ao últimos seis meses de Salgado no BES apontam para suspeitas de atos de gestão ruinosa e incumprimento de várias instruções do regulador.

 

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