É verdade que a palavra génio pode ter perdido alguma força. E usá-la com criaturas extraordinárias como Clarice Lispector, autora de uma obra que eleva a língua portuguesa acima das suas próprias fronteiras, é um risco. Até porque se há alguém que escapa constantemente a classificações simplistas é ela, a judia ucraniana feita voz maior da literatura brasileira do século XX, falecida em 1977 e tantas vezes esquecida, nomeadamente em Portugal.

Todos os contos Clarice Lispector Relógio d'Água 22 euros

Todos os contos de Clarice Lispector. Relógio d’Água
22 euros

Mas desde 2010, ano em que o norte-americano Benjamim Moser publicou nos Estados Unidos a biografia Clarice Lispector:uma vida, tornando a escritora uma estrela no mercado americano, que Clarice parece estar a viver uma segunda vida. Já não como a judia hermética, excêntrica, difícil mas como uma escritora popular cujos livros se vendem nas máquinas automáticas nas estações de metro, com milhares de fãs que partilham as suas frases, as suas fotografias e parecem dispostos a fazer o que fez um dia a cantora Maria Bethânia: atirou-se aos pés de Clarice e gritou, “minha musa”. Clarice odiou este gesto, “é mais fácil ser santa do que ser humana”, terá dito depois.

O furor americano com Clarice tem sido tal que está em marcha a realização, em Hollywood, de um biopic sobre a escritora. Não se sabem pormenores embora a imprensa tenha anunciado que será Meryl Streep a ocupar o lugar de protagonista. Para já são os EUA que continuam a posicionar-se à frente na divulgação da obra. Em 2015 Benjamin Moser reuniu, pela primeira vez, num só volume, todos os contos da escritora. São ao todo 85 histórias, algumas delas inéditas. Um maravilhoso volume que só peca pelo prefácio algo superficial de Moser. A Relógio d’Água, que detém os direitos da autora há mais de 20 anos, e que desde 2012 tem vindo a reeditar toda a sua obra, é a responsável pela vinda para Portugal deste livro.

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Francisco Vale, responsável editorial da Relógio, confirmou ao Observador que, desde que há seis anos houve o boom Clarice nos Estados Unidos, todo o mundo, inclusive Portugal, pareceu enfim ter descoberto e aceite a obra da escritora. Os livros têm tido várias reedições, sendo A Paixão de G.H, o mais vendido. No prefácio Benjamin Moser reconhece que o Facebook tem sido um poderoso instrumento de divulgação, mas também um produtor das mais bizarras imitações, e dos mais insanos admiradores que (tal como de resto fazem com Fernando Pessoa) inventam frases, textos, poemas, assinam com o nome de Clarice Lispector e os mais incautos logo se apressam a replicar a sua mais recente “descoberta”.

Esta segunda vida de Clarice Lispector impulsionada pela legitimação da autora junto do público anglosaxónico faz Francisco Vale lamentar o facto de o leitores e as instituições não acreditarem no valor dos seus autores enquanto estes não obtêm o tal “reconhecimento lá fora”. O editor lembra os casos semelhantes de Elena Ferrante ou Karl Ove Knausgård, cujo furor só começou depois dos americanos terem “aprovado”.

Clarice Lispecto:Uma Vida, de Benjamin Moser, Ed. Civilização, 2010

Clarice Lispector:Uma Vida, de Benjamin Moser,
Ed. Civilização, 2010

Este volume de contos permite não só conhecer e compreender e a obra da escritora para lá dos romances que a consagraram, mas também as linhas invisíveis que ligam a sua escrita à sua vida. Nos contos, mais que nos romances, encontram-se traços autobiográficos, e paralelismos entre as histórias e as suas heroínas e as várias fases da vida da autora: desde que começou a escrever aos 19 anos, a sua vida de mulher jovem e bela, o seu casamento nunca totalmente feliz com o diplomata Maury Gurgel Valente, a vida fora do Brasil, a maternidade, a idade madura, o divórcio, os amantes circunstanciais, a paixão nunca superada pelo poeta homossexual Lúcio Cardoso, uma relação com um homem casado que nunca a escolheu, a solidão, os problemas de trabalho e falta de dinheiro dos seus últimos anos. Sem que os contos sejam abertamente autobiográficos eles espelham estas várias vidas que foram as de Clarice, mas que poderiam ter sido de tantas outras mulheres e homens.

As mais de 500 páginas do livro revelam o quanto Clarice trabalhou o conto em paralelo ao romance. Neles a densidade metafísica e linguística chega a ser maior que qualquer dos seus romances, e mostra como a autora trabalhava com espaços interiores, espaços que constituíam horizontes vastos com dezenas de coisas a acontecerem em simultâneo, a eclodirem vindas do mistério que há em tudo. Ao contrário do habitual, Clarice preocupa-se menos com a construção de um tempo narrativo, fechado no pretérito perfeito, e mais com a tradução, em palavras, de um espaço onde o interior dos homens e mulheres está em metamorfose continua. E aqui se nota a sua proximidade com o judaísmo e com outros escritores judaicos.

Nascida para o milagre que não aconteceu

Chaya, que em hebraico quer dizer ‘vida’ e ‘animal’, é o verdadeiro nome de Clarice Lispector. Este nome que depois, já no Brasil, foi substituído por Clarice, é o primeiro indicio dos trágicos acontecimentos que estão na origem do nascimento da escritora, na remota cidade ucraniana de Thechelnik, em 10 de dezembro de 1920.

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Clarice pintada por De Chirico, em 1945. A artista foi ainda retratada por Alfredo de Ceschiatti, em 1947 e Carlos Scliar, em 1972. Imagem em:saraivaconteudo.com.br

Oriunda de uma comunidade de judeus pobres que deixaram a Polónia no início do século XVII, e se refugiaram na região da Podólia (sudoeste da Ucrânia), Clarice Lispector nasceu durante a vaga de progroms que assolaram a Rússia depois da 1ª Guerra Mundial e da Revolução Bolchevique de 1917. Estes massacres, apagados da História, contam-se entre os maiores massacres sofridos pelo povo judeu antes da 2ª Guerra Mundial, com as estatísticas a apontarem para a morte de cerca de 40 mil pessoas.

Sem beneficiarem de qualquer proteção do regime comunista as comunidades de judeus eram atacadas e massacradas, as mulheres violadas, os homens assassinados. Tudo o que tinha valor era roubado e o resto destruído pelo fogo. Nesses anos o casal Pinkas e Mania (esta oriunda da burguesia rural abastada), pais de Clarice, já tinham duas filhas: Tânia e Elisa. Numa noite em que Pinkas estava fora, a cidade foi atacada e Mania terá sido sido violada e contraído sífilis. Depois dessa experiência de terror, o casal decide abandonar a Rússia e começa a longa viagem rumo à América.

Uma lenda comum entre os judeus era que uma nova gravidez curava a sífilis. Apesar desta lenda estar longe da verdade e de a maior parte das crianças nascidas de mães com a doença morrerem ou nascerem infetadas, os pais de Clarice decidiram ter outro filho. Essa criança tinha como missão salvar a mãe. E assim nasce Clarice no meio dessa viagem, em Thechelnik, onde ela nunca voltou mas que tem uma praça com o seu busto.

Perto do coração selvagem, frase roubada a James Joyce, de 1943 marca a sua estreia como indómita romancista

Perto do coração selvagem, frase roubada a James Joyce, de 1943 marca a sua estreia como indómita romancista

Contra todas as probabilidades, Clarice nasceu saudável, a família conseguiu chegar ao Brasil em 1922 e estabeleceu-se em Maceió, onde já viviam alguns parentes. Contudo, a doença de Mania continuou a progredir, Pinkas, que mudou o nome para Pedro, só conseguiu trabalho como vendedor ambulante de roupa em segunda mão, e a família viveria sempre numa situação de extrema pobreza, não obstante a vibrante inteligência das meninas Lispector. Tânia também seria escritora, Elisa pianista e Clarice… Clarice um prodígio da natureza.

Até aos 10 anos inventa histórias para distrair a mãe cada vez mais doente e imobilizada (Mania viria a morrer quando Clarice tinha 10 anos, deixando-lhe para sempre a culpa de não a ter conseguido salvar). Aos 13 decide tornar-se escritora. Aos 20 publica o seu primeiro conto e começa a trabalhar como jornalista. Aos 23 provoca um pequeno terramoto na literatura brasileira com o romance Perto do Coração Selvagem.

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A belíssima Clarice, depois da publicação do primeiro livro, com pouco mais de 20 anos. Imagem em:claricelispector.blogspot.com

Tendo deixado para trás no nome judaico, Clarice foi contudo educada, nos preceitos religiosos e o Pai, judeu sionista, nunca deixava de retirar do seu magro salário, algum dinheiro para enviar para a causa dos judeus palestinianos. O talento precoce de Clarice fez com que o pai e a irmã mais velha (Tânia, entretanto casada com um judeu abastado) reúnam esforços para colocar a escritora numa faculdade. A escritora fará o curso de direito, ao mesmo tempo que vai trabalhando como jornalista e nunca chega a exercer. Entretanto o pai, Pedro Lispector, também morrerá sem ver triunfo da sua filha mais nova. Pouco depois de terminar a faculdade e de publicar o seu primeiro livro, casa com o colega de curso Maury Gurgel Valente, católico, consegue a nacionalidade brasileira e parte como embaixadora para Berna, na Suíça. Clarice afasta-se de qualquer religião, embora continua a ser, até hoje, a mais mística das escritoras de língua portuguesa

Clarice Lispector: haja quem lhe encontre a chave

Em 1949, sobre o romance Cidade Sitiada, o critico português João Gaspar Simões, escreve num pequeno texto sobre a escritora e a sua obra: “é de um hermetismo que tem a consistência do hermetismo dos sonhos. Haja quem lhe encontre a chave”.

É verdade que até hoje ninguém lhe “encontrou a chave”, apesar de se sucederem livros, teses académicas, ensaios literários e filosóficos. É que ao contrário do que manda o pensamento positivista, nem tudo é para ser decifrado, nem todos os mistérios se desfazem, nem tudo o que está enterrado ou calado deve ver a luz do sol. Clarice sabia disso, por isso, e numa forte posição de desobediência face à sua época, nunca fez questão de se explicar, nem na vida nem nos livros. Abandonou acontecimentos e factos, duas coisas que, confessa, “a aborreciam”, por sinais confusos, impressões breves, memórias fugidias.

Os romances de Clarice não têm enredo, no sentido clássico do termo. O seu ponto de partida é sempre o caos que habita sob a vida exterior, o desenvolvimento é sempre a indeterminação das decisões, as impressões dispersas, os esquecimentos, o caráter disruptivo da memória no meio do quotidiano, as vozes interiores, os demónios, a perda inexorável da vida ao mesmo tempo que se vive.

Neste sentido, os contos são como embriões dos romances, onde essas características se tornam ainda mais visíveis. Veja-se por exemplo nas Cartas de Idalina a Hermengardo, um dos textos inéditos que compõem este livro de contos:

Hoje li numa revista um artigo sobre “spleen” (…) Só não vejo que spleen, isto é essa palavra pareça com o que eu sinto. O que sinto é o que eu sinto, e acabou-se: está misturado comigo. E como é que eu posso fazer de mim uma palavra?”

Também, tal como nos romances, aqui podemos encontrar as marcas do universo Lispector: a violência interior, as pulsões que mais nos aproximam dos animais que dos humanos e que são reprimidas pela ordem social, pela vida quotidiana. A existência banal que é estilhaçada por um acontecimento insignificante, a obcecante busca de Deus ou do absoluto mas, sobretudo, a utilização de uma linguagem que procura traduzir imagens mentais impossíveis.

O romance místico (e não kafkiano) A paixão segundo G.H, é o livro mais vendido em Portugal

O romance místico (e não kafkiano) A Paixão Segundo G.H, é o livro mais vendido em Portugal

Clarice Lispector foi muitas vezes comparada a Virgina Woolf, no entanto ela sempre foi muito mais próxima do universo de escritores judeus da Europa central e de Leste, que fizeram da palavra simultaneamente criadora e destruidora de mundos. A palavra que, a boa maneira cabalista, se destina a ser eternamente reinterpretada, é sempre a outra face do silêncio. E Clarice joga magistralmente com essa dupla face da palavra.

Mas a singularidade de Clarice revela-se também na forma dos seus textos: a desobediência à gramática, à pontuação, a ausência de linearidade temporal, a organização fragmentária das narrativas que procuram uma aproximação à vertigem dos pensamentos. As suas personagens, femininas ou masculinas, são inevitavelmente criaturas tão misteriosas como a própria Clarice que, quando visitou a esfinge, no Egipto, declarou: não a decifrei. Mas ela também não me decifrou a mim.

Se nos romances, a autora, não perde muito tempo a descrever cenários e ações, nos contos isso ainda é mais sentido. As personagens raramente têm mais do que o nome próprio e às vezes podem até ser um animal (como no conto “A Galinha de Domingo”), ou seres humanos na fronteira da animalidade (“A mais pequena mulher do mundo”). Mas, como escreve Moser, “o mundo de Clarice não se desenha com traços psicologizantes mas metafísicos. A busca dela era para se identificar com o inumano que, em última instancia, seria Deus (…) Nestas histórias, o divino eclode sob vidas quotidianas cuidadosamente vigiadas.”

Depois de viver vários anos em cidades estrangeiras, de não conseguir editoras que lhe publicassem os livros, a escritora conheceu um longo período de obscuridade. Era dada como sendo comunista, lésbica, homem, ghostwriter. O seu nome estrangeiro e a sua pouca disponibilidade para dar entrevistas não ajudaram. Em 1959, Clarice divorcia-se e regressa definitivamente ao Brasil. Tem dois filhos, Pedro e Paulo. Na adolescência, Pedro viria a desenvolver uma esquizofrenia. A autora vive então das ajudas do ex-marido e de trabalhos em jornais, sobretudo como cronista, mas também como entrevistadora. Escreve sobre literatura, culinária, moda, etiqueta. Apesar de reservada dá-se com a boémia brasileira dos anos 60, milita contra a ditadura militar, coleciona amantes e frustrações. E continua a escrever. Escreve até ao fim da vida.

Quando morreu, de cancro, em 1977, já era um mito entre a intelectualidade brasileira. Mas, ao contrário de tantos, nunca alimentou esse mito. Lutou contra ele. Não dava entrevistas, ou então era tão hermética nas respostas que tornava o trabalho de qualquer jornalista impossível. Nos últimos anos refugiou-se em casa e na escrita. Tornou-se ainda mais difícil: inventava palavras, fazia experimentalismos radicais com as estruturas frásicas, como se pode ver no seu último e incompleto romance, Um Sopro de Vida (Pulsações).

O jornal Folha, de 12 de dezembro de 77, dá conta das cerimónias fúnebres:

Duzentas pessoas compareceram ao enterro da escritora Clarice Lispector no Cemitério Comunal Israelita, no Caju (Rio). Seu corpo, velado desde sexta-feira no oratório do cemitério, foi colocado no túmulo 123, da fila G. depois de ter sido purificado por quatro mulheres da Irmandade Sagrada “Hevra Kadisha”, de acordo com o ritual judaico. O caixão fechado e coberto apenas por um manto negro com uma estrela de David, bordada, foi visitado pelos escritores Rubem Braga, Fernando Sabino, Nélida Piñon e José Rubem Fonseca, além do embaixador Vasco Leitão da Cunha.”

Feiticeira, glamourosa, trágica, a nova Clarice made in USA

O epíteto de feiticeira sempre acompanhou Clarice Lispector, mas num tempo em que tudo precisa de traços identitários fortes que ajudem a vender, é provável que Clarice, a escritora se torne menos uma escritora complexa, destinada, na verdade, a poucos leitores, e mais uma aberração como tantas atrizes e artistas cujas vidas fascinantes as tornaram num objeto de consumo lucrativo.

O prefácio de Benjamin Moser para este volume de contos, intitulado “Glamour e Gramática”, faz temer o pior. Apesar de ter escrito uma biografia muito sólida, Moser parece agora mais apostado em vender bem uma criatura animalesca e impossível como foi Clarice Lispector. A tónica de todo o seu texto é colocada em aspetos como o glamour, a beleza, a suposta capacidade de feitiçaria, deixam de ser características que nascem do acaso, do sofrimento e das experiencias concretas da escritora, do entrelaçamento entre a sua vida e a sua escrita, para serem assim uma espécie de folclore vazio.

Vale a pena ouvir a única entrevista que a escritora deu para televisão, em 1977, com o seu sotaque único e as suas respostas desarmantes, o seu eterno ar de menina travessa, aliado a um enorme desligamento porque, como ela diz: eu agora estou morta.

Lispector ganha contornos de figurinha kitsch, e talvez não falte muito para que façam com ela o mesmo que fizeram com Pessoa: um boneco esguio para vender a turistas, um boneco que se pendura na estante a fazer a vezes de toda a sua obra que não foi lida, de todo o pensamento que não foi compreendido.

Apesar destes tiques superficiais, que não esperaríamos de alguém que conhece tão bem a obra e a vida da autora como Benjamin Moser, Clarice, como todas as criaturas que emergem do fundo dos tempos, e viveram de entendimentos secretos com a vida, vai certamente resistir a tornar-se apenas uma imagem vazia. Será sempre na sua totalidade, ou seja, nos seus livros exigentes, nas suas frases abismais, nas suas personagens mortíferas, que ela sobreviverá.