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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Abandonados

Filipe Lopo anda sozinho a bater às portas. Paulo e Carla estão com medo de uma fábrica que ainda deita fumo. E há queixas de que os psicólogos saem sempre às 18h00. "Ninguém quer saber de nós."

Adelaide Alves vive sozinha — mas só na noite do incêndio soube o que é estar abandonada. Quando viu que o fogo que partiu do concelho de Pedrógão Grande já chegava à sua aldeia, Feteira, em Castanheira de Pera, a mulher de 73 anos pegou na mangueira que até então só usara para regar a horta e protegeu a sua casa como sempre. Ligou-a ao reservatório que tem em casa e só parou quando a água esgotou e a mangueira derreteu com o calor.

“A minha casa é de madeira, se o fogo pegasse numa coisa ia logo tudo a seguir”, diz, referindo o seu maior receio na noite de 17 de junho.

Adelaide ainda tentou que os bombeiros viessem, mas não houve ninguém que lhe acudisse. “Não tivemos ajuda nenhuma, nem dos bombeiros, nem de ninguém. Eles esforçaram-se muito, mas quem manda neles não planeou isto bem”, diz. “Se não fôssemos nós, isto tinha ardido tudo. Não se aproveitava nada.”

Sem ajuda dos bombeiros, Adelaide teve de apagar o fogo que cercava a sua casa com água do reservatório e com uma mangueira que queimou com o calor (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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Enquanto Adelaide corria, conforme as pernas lhe deixaram, para salvar a sua casa do fogo, Carla Baeta fechou-se dentro da sua. Tinha uma preocupação essencial: acalmar a filha, de 11 anos. A partir do sótão, com a ajuda de um amigo, o marido, Paulo da Graça, usava uma mangueira de jardim para molhar tudo o que podia.

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No andar a baixo, Carla ligava para o 112. Das duas primeiras vezes que ligou, disseram que iriam aparecer assim que pudessem. Depois, à terceira, disse-lhes: “Isto está tudo a arder, temos fogo à porta da nossa casa e estamos cercados!”. Do outro lado, diz que ouviu: “Nós não temos gente para mandar para aí, mas o que já ardeu não volta acender”. Depois, desligaram.

Além de estar cercada de chamas, a casa de Carla e Paulo esteva numa zona de perigo. Nas traseiras, têm uma carpintaria que ardeu. Do lado esquerdo, uma casa não habitada onde explodiram botijas de gás. Do lado direito, um lagar. E, atrás deste, uma fábrica que fabrica pellets de madeira, usados para aquecimento. O que correu mal, podia ter corrido ainda pior. “Felizmente ainda cá estamos para contar a história”, diz Paulo. “Mas a história é de terror.”

Paulo e Carla tiveram a casa cercada por chamas. Da terceira vez que ligou para o 112, disseram a Carla que "o que já ardeu não volta a acender" e desligaram (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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Não muito longe da casa de Carla e Paulo, está o Café da Adega, numa terra com o mesmo nome, no concelho de Figueiró dos Vinhos. Na noite do incêndio, tinham clientes dentro de portas — e foi lá dentro que eles ficaram. Nélson Elias, vendedor ambulante de 63 anos, era um deles. “Tínhamos acabado de ver os putos dos sub-21 a jogar com a Sérvia quando aquilo começou a apertar”, recorda. À medida que o fumo começou a entrar dentro do café, a dona do estabelecimento, Lurdes do Carmo, 51 anos, foi buscar toalhas ao andar de cima, onde mora. “Vim cá abaixo, molhei-as e pusemo-las todos à frente da cara, para não morrermos com o fumo”, disse.

Entretanto, chegou uma ambulância em chamas — que transportava três queimados — e um carro de transporte de doentes de não-urgentes. Vinha do Cume, ali perto, mas não sabiam para onde ir. “O sistema de comunicações deles não estava a funcionar”, recorda Nélson Elias. “Então perguntei-lhes do que é que eles precisavam e eles disseram-me que era para falar com o 112.” O vendedor ambulante pegou no telemóvel, conseguiu que a chamada passasse. Passou o telefone ao chefe da equipa.

“Se isto fosse em Lisboa, as coisas não tinham sido assim”, queixa-se Nélson Elias, vendedor ambulante (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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Ao mesmo tempo, os queimados agoniavam na estrada, onde mandaram que eles se deitassem. “Eram três ingleses, estavam horríveis, todos queimados”, recorda Lúcia. “Só tinham as cuecas, mais nada.” Às tantas, enquanto os condutores de emergências tentavam perceber qual era o melhor caminho para saírem daquela aldeia, os feridos pediram a Lúcia que lhes desse garrafas de água. Quando lhas passaram, cada um abriu-as e despejaram-nas por cima dos próprios corpos. O alívio era efémero e pouco depois voltavam a gritar com as dores. Finalmente, passados 15 minutos, os feridos foram levados para o carro de transporte não-urgente e seguiram caminho.

O funcionário municipal que “anda a fazer” de psicólogo

Nos dias seguintes ao incêndio, enquanto se refazia do susto, Adelaide e todos os seus vizinhos, na aldeia da Feteira, ficaram sem água. Só quinta-feira à tarde, cinco dias depois de o incêndio ter começado, a água voltou. Ainda assim, Adelaide bem podia abrir a torneira ao máximo, que apenas escorria um fio. No sábado, o dia que marca uma semana da tragédia de 17 de junho, a água já saía da torneira em abundância. Mas, para já, não é potável.

“Isto tem sido tudo muito complicado. Até agora não tem havido como tomar banho, só dava para dar uma lavadita com pinguinhas, era um lavar de gato”, conta. Além disso, cozinhar estava fora de questão. “Durante dias só comi pão com fruta.” A fruta era a que tinha por casa. O pão foi o que lhe sobrou de sábado, quando, de manhã, comprou quatro bolinhas. “Nem costuma comprar tantas. Parece que já adivinhava o que vinha aí.”

Ao longo destes dias, apenas um funcionário da Câmara Municipal de Castanheira de Pera bateu às porta de Adelaide para saber como ela estava. Filipe Lopo trabalha para aquele município há quase 40 anos. É encarregado da divisão de desporto e cultura, além de tratar de parte da comunicação da autarquia. Porém, nos últimos dias, tem servido de assistente social, psicólogo, guarda e tudo o mais que seja necessário. “Nós estamos aqui sozinhos, estamos abandonados”, queixa-se.

Filipe Lopo, funcionário da Câmara Municipal de Castanheira de Pera, diz que chegou a aldeias onde "não havia água, não havia comida, não havia nada” (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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“Nós, que trabalhamos aqui na câmara, somos os primeiros a chegar a muitos sítios. E vamos lá fazer coisas que são completamente fora do nosso âmbito, não tem nada a ver com as nossas capacidades. Fazemos o nosso melhor, mas isso às vezes não chega”, diz. Segundo este funcionário da câmara de Castanheira de Pera, não foram poucas as aldeias onde, à chegada, percebia que faltava um pouco de tudo. “Não havia água, não havia comida, não havia nada”, diz.

Filipe foi a primeira pessoa a contactar com Adelaide. Quando este lhe bateu à porta, ela hesitou. Pensava que podiam ser burlões, ou até ladrões, sobre os quais a sua filha lhe tinha deixado um aviso. “Não abras a porta a quem não conheças, eles andam aí a enganar e a roubar as pessoas”, disse-lhe ao telefone, a partir de outra aldeia de Castanheira de Pera. Ao início, demorou a abrir a porta a Filipe. Só quando lhe ouviu o nome, que o próprio repetiu mais do que uma vez, é que aceitou a abrir a porta. Depois, falou da falta de água. E não só.

“As pessoas precisam muito de falar, as pessoas têm muitas coisas para desabafar depois de uma tragédia destas”, refere Filipe. “Nós ouvimos, claro. Somos humanos. Mas não somos psicólogos.”

Durante quase toda a semana, Filipe fez rondas às várias aldeias do concelho. A maior parte fê-las sozinho. Apenas numa foi acompanhado por uma equipa multidisciplinar — com elementos da Segurança Social, da PSP e da Proteção Civil —, como as que foi noticiado estarem a rondar a zona. “Mas eles só estiveram disponíveis das 14h00 às 18h00”, queixa-se. “Primeiro, demorámos a sair porque eles não tinham motoristas e achavam que era melhor não irmos numa carrinha que a câmara tem, porque não tinha ar condicionado”, diz. “E depois tivemos de voltar porque já eram 18h00 e eles tinham de ir para uma reunião.”

Ao Observador, uma voluntária que esteve em Pedrógão Grande conta que “havia uma descoordenação total” nos centros de ajuda às vítimas do incêndio, nomeadamente aos desalojados. “Havia muita gente a mandar, mas quase ninguém a coordenar”, diz a voluntária, que pediu para que o seu nome não fosse publicado.

Num dia, deparou-se com uma mulher que acabara de saber que a sua filha tinha morrido nos incêndios. Aos gritos, sentindo a dor que só quem perde um filho poderá conhecer, dizia: “Eu vou-me matar, eu vou-me matar, eu quero morrer!”. A voluntária foi procurar um psicólogo, mas não encontrou ninguém. “Eles saíam todos às 18h00”, refere. Eram 18h30.

Além disso, conta ao Observador que houve muitos donativos, como a comida e roupa que chegaram um pouco de todo o país, que ficaram empatados dentro de armazéns e centros de recolha. “O que nos disseram foi que só a Proteção Civil podia levar essas coisas às pessoas”, refere. “Então o que nós fizemos a maior parte do tempo foi dobrar roupa. Nós e alguns militares, que estavam ao nosso lado”, explica. “Eu entendo que não possam ir civis, mas havia militares que podiam tratar disso. E também estava lá a Cáritas e a Santa Casa da Misericórdia, que podia fazer isso”, desabafa.

Adelaide, que não tem carro, só na sexta-feira teve comida em casa para além do pão, fruta e legumes da sua horta que escaparam ao incêndio. Teve de ir com uma vizinha, que tem carro, ao centro da vila de Castanheira de Pera para trazer um cabaz com enlatados, arroz e algumas bolachas.

A fábrica que ainda deita fumo e deixa Paulo e Carla com medo

Em Pinheiro Bordalo, Carla e Paulo têm medo de que a machada final ainda esteja para chegar. Sempre que olham pela janela, em direção à fábrica de pellets, vêm um fumo que sai lentamente de um dos silos. “Aquilo estão ali para cima de três toneladas de pellets”, garante Paulo, que em tempos foi empregado lá. “O fumo ainda não deixou de sair dali, aquilo ainda está tudo a arder”, garante. Já ligou para o número 117, a linha de proteção de florestas, e para a Proteção Civil a alertar da situação. “Até agora, ninguém passou aqui, nada”, diz. “Devem estar à espera que aconteça outra igual.”

Ao lado da casa de Paulo, um silo de uma fábrica de pellets continua a deitar fumo. Paulo já ligou à Proteção Civil, mas a situação demora a ser atendida. (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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“Eu assim não descanso”, garante Carla. “Não há maneira de uma pessoa ter passado por aquilo tudo e, agora, ter aqui à frente uma fábrica ainda a fumegar e não ficar com medo. E nós ligamos, ligamos, ligamos, e ninguém quer saber de nós. Foi assim na altura do fogo e agora continua a ser.”

Um pouco por todos os lugares, aldeias e vilas que arderam, são muitos aqueles que se queixam de abandono, por parte das autoridades e instituições. “Eu não ponho culpa nas pessoas que estão no terreno, eles até se podem esforçar, mas quem manda neles não sabe o que está a fazer”, refere Paulo, naquilo que parece ser uma opinião muito comum, para não dizer unânime.

Nélson está junto à sua banca, montada à porta dos correios em Castanheira de Pera. Só trouxe chapéus, porque perante a avalanche de roupas oferecidas que chegaram à região, sabia que não ia encontrar quem lhe comprasse calças ou camisas. Não tem dúvidas: “Se isto fosse em Lisboa, as coisas não tinham sido assim”. “Isto começou a arder ao início da tarde, mas só chegou ajuda como deve ser na segunda-feira”, queixa-se. “Só aconteceu assim porque é fora da cidade, é longe de Lisboa”. Depois, deixa uma pergunta: “Isto foi assim com um incêndio, mas como será no dia em que tivermos um guerra?”. De seguida, faz um “pffffff” com a boca e lança as mãos acima da cabeça. A partir delas, é como se um país se desfizesse subitamente nos ares.

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