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Alt-Right. Da Guerra Civil a Steve Bannon, como nasceu, cresceu e está de novo em campo a extrema-direita que apoia Trump

Da Guerra Civil a Steve Bannon, entre o Klu Klux Klan e milhares de outros movimentos radicais, a extrema-direita americana parece ter em Trump um ídolo. E a extrema-esquerda? Também existe.

Era um dia de setembro, havia uma brisa morna e benevolente no ar e Nova Iorque estava transformada num cliché postaleiro: folhas amarelas e vermelhas voavam em remoinhos nos passeios, o sol batia só de um lado dos edifícios de tijolo laranja. Estávamos em 2014, e Reid Charlin, agora jornalista da VICE e na altura da Rolling Stone, tinha sido convidado para um jantar onde se encontrariam as principais figuras de um obscuro jornal de direita, o Breitbart.

O seu mentor era Steve Bannon, na altura apenas “mais um incompreendido, mais à direita do que os outros incompreendidos de direita”, diz ao Observador Charlin, que recomeça a contar uma história que aconteceu nessa noite. Bannon acabaria por se tornar o”estratega-mor” do Presidente dos Estados Unidos durante mais de meio ano, mas foi despedido esta sexta-feira. O rótulo de dinamizador de uma direita feroz, mas algo adormecida durante aos anos de Barack Obama na Casa Branca, foi demasiado para o aguentar no rescaldo de um fim-de-semana violento em Charlottesville. Donald Trump afastou-o.

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Voltando a 2014. O jantar foi no restaurante Odeon, em Tribeca. Como é Bannon? “O Bannon foi muito interessante. Nunca consigo encontrar os adjetivos. Não quero dizer encantador, porque ele não é exatamente isso, mas é alguém que nos prendia, que sentíamos necessidade de escutar. É uma espécie de espadachim contente, cheio de histórias e entusiasmo.”

Protestos à frente dos escritórios da Breitbart, uma publicação online que defende alguns dos valores da "alt-right" ROBYN BECK/AFP/Getty Images

AFP/Getty Images

Nesse jantar Bannon falou durante uma hora e meia sobre os planos para o seu site de notícias. Não comeu nada, nunca tirou o casaco e andou sempre com um bloco e com duas canetas no bolso do casaco. Durante o discurso criticou a “benevolência” dos media perante as “catástrofes” da administração Obama, a engrenagem republicana que nada fazia, a imigração, o terrorismo islâmico. E disse que a ideia do Breitbart não era oferecer “uma palmadinha nas costas e um abracinho apertado”. As pessoas que visitavam a página, disse, “sabem que estão a entrar no Fight Club”.

Ao longo do discurso haveria de repetir várias vezes: “Isto não é a porra da NPR”, a rádio pública norte-americana conhecida pela sua cobertura jornalística mais próxima da esquerda norte-americana. Mas não era esse público que Bannon estava à espera, não era essa a clientela que ele queria no seu site, que começou a vender uma determinada ideologia a par com informação duvidosa: o artigo sobre os 58 estudos que provavam que as alterações climáticas não estão a acontecer e aquele em que se lia que Barack Obama ofereceu a si mesmo uma medalha ficaram na memória. Mas há uma lista exaustiva de outras falsidades publicadas num dos meios de comunicação que o presidente Trump considera que não dá “notícias falsas”.

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Charlin continua a contar o que se passou naquela noite. “Depois Bannon começou a contar uma história sobre uma zona do Texas, McAllen, que alegadamente era completamente controlada por cartéis de droga mexicanos, e ninguém fazia nada. Toda a cidade, as escolas, o centro médico, tudo dos lordes da droga. Disse que era ali que as mães e as esposas dos traficantes viviam e que se passassemos de avião por cima só se viam três coisas: bairros de lata, casas com piscina e Jaguares. É incrível o detalhe com que ele conta uma mentira, como é que tu identificas Jaguares do ar? É verdadeiramente impressionante. Referências cinematográficas lá pelo meio e tudo”, relembra.

"Depois Bannon começou a contar uma história sobre uma zona do Texas, McAllen, que alegadamente era completamente controlada por cartéis de droga mexicanos, e ninguém fazia nada. Toda a cidade, as escolas, o centro médico, tudo dos lordes da droga. Disse que era ali que as mães e as esposas dos traficantes viviam e que se passássemos de avião por cima só víamos três coisas: bairros de lata e casas com piscina e Jaguares. É incrível o detalhe com que ele conta uma mentira, como é que se identificam Jaguares do ar?"
Reid Charlin, jornalista da VICE que esteve num jantar com Steve Bannon em 2014

A história de Bannon nunca saiu na Rolling Stone, apesar de ele ter insistido com o editor que o movimento já não era assim tão “franjinhas” e que se estava a tornar uma espécie de argamassa entre os “desfranchisados”. Dois anos passaram desde este episódio e Bannon teve acesso direto a Donald Trump por mais de seis meses. Mas a história de Chalin com o que viria a ser o círculo íntimo de Donald Trump ainda não tinha terminado. Foi enviado para Washington, de onde tinha chegado um convite para que se juntasse aos colaboradores do Breitbart na sua “embaixada”, assim lhe chamava Bannon. Era uma casa luxuosa, com três andares e feita daqueles blocos de tijolo vermelho escuro que cobrem a maioria dos prédios em Londres. Ficava na jugular política do país: apenas a umas centenas de metros de Capitol Hill.

Steve Bannon, estratega da "alt-right" e um dos conselheiros mais próximos de Trump até ter sido despedido na sexta-feira @Chip Somodevilla/Getty Images

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“Estava toda a gente muito bem vestida, a beber naqueles copos de Martini e comecei a reconhecer algumas caras. A que me ficou foi a de Jeff Sessions. Pus-me a pensar: que raio está ele a fazer aqui?”

É aqui que a segunda personagem do elenco Trump entra em cena. Sessions é hoje o Procurador-geral dos Estados Unidos da América, mas mesmo assim o presidente já ameaçou despedi-lo. Na altura, diz Chalin, Sessions era um membro do Congresso do mais obscuro possível, “um homem branco e velho do Alabama, conservador, no meio de miúdos que se conheciam bem e achavam que iam mudar a América”. Ei-lo agora na Casa Branca.

“Na altura vi-os a todos um pouco como náufragos, um grupo de deslocados. Quem também lá estava era Nigel Farage, fundador do Partido para a Independência do Reino Unido, que falava do Brexit, coisa que, na altura, também me pareceu um esticanço enorme da realidade. Mais um vez, a história repetia-se, mas continuava a apanhar-nos despercebidos”, continua o jornalista. Da lista de convidados faziam ainda parte Sebastian Gorka, hoje assistente pessoal de Trump, e também Stephen Miller, o quase-diretor de comunicação da Casa Branca, conselheiro próximo de Donald Trump, 31 anos, convicto nacionalista, nemesis dos jornalistas. “Eu olhei para aquela sala e só via ou miúdos conservadores frustrados, com laços ao pescoço como em 1890, ou republicanos um pouco mais duros, alguns libertários, mas nunca jamais diria que daquela sala iriam sair alguns dos mais influentes costureiros de política da América”, admite o jornalista.

Donald Trump: a parte difícil era falhar

As pessoas que estavam nessa festa não desapareceram sob o extremismo das suas ideias, até porque algumas delas fazem hoje parte do cardápio que Donald Trump adotou para a Casa Branca. A grande maioria dos homens e mulheres que estavam naquele jantar, e que, de certo, se reuniram muitas outras vezes para consolidar apoio em torno de Donald Trump mesmo antes de ele ser eleito como candidato oficial do Partido Republicano, não representam o movimento que convergiu em Charlottesville, no fim-de-semana passado. Mas a relutância que Donald Trump mostrou em condenar os vários grupos supremacistas presentes na manifestação, deixou muitos dos seus parceiros políticos, para não falar dos seus oponentes, com a sensação de que o presidente estava refém dos nacionalistas.

Membros apoiantes da supremacia branca pedem às autoridades que impeçam a remoção de uma estátua de um general norte-americano pró-escravatura ANDREW CABALLERO-REYNOLDS/AFP/Getty Images

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Logo depois de se saber que uma jovem mulher de 32 anos tinha morrido vítima dos ferimentos provocados pelo carro de James Fields, um jovem de 21 com ligações a grupos neo-nazis, que embateu intencionalmente contra um grupo que protestava contra a concentração de extrema-direita, Trump disse que a violência vinha de “muitos lados”.

No dia seguinte, o presidente condenou, sem equívocos, os racistas e o Ku Klux Klan: “O racismo é vil, e aqueles que são violentos em seu nome são criminosos, incluindo o KKK, os neo-nazis e os supremacistas brancos e outros grupos que propagam o ódio e que são repugnantes perante tudo o que somos como americanos”. 24 horas depois, uma inversão de marcha: na torre com o seu nome, em Nova Iorque, Trump voltou a dizer que havia violência e ambos os lados, utilizando o termo “alt-left” para se referir aos manifestantes anti-fascistas que estiveram na marcha, referindo ainda que havia “pessoas com muita qualidade” entre os supremacistas brancos.

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“Ele fez o mais díficil, que era falhar uma comunicação tão simples. É um assunto complexo em si, mas muito fácil de navegar politicamente: condena-se e ponto final. A reação do presidente não faz sentido nenhum, até porque os supremacistas não são assim tantos, são menos de 1% da população. Pergunto-me que base eleitoral achou ele que estaria a alienar se condenasse estas pessoas. Não há dois lados nesta questão e nem eleitorialmente faz sentido nenhum fingir que sim”, diz ao Observador o professor Jeff Anderson, professor de História na Universidade de Georgetown, em Washington, com especialização em movimentos extremistas de influência alemã.

O partido republicano uniu-se para pedir clareza ao Presidente. As frases “equivalente moral” e “ambiguidade moral” foram rejeitadas por um grande número de pessoas ao seu próprio partido. O porta-voz da Casa dos Representantes, Paul Ryan, escreveu no Twitter: “Temos que ser claros. A supremacia branca é repulsiva. Esta intolerância é o contrário do que se defende neste país. Não pode haver qualquer ambiguidade moral”. Os dois ex-presidentes Bush também condenaram a violência e o racismo.

Ou seja, poucos ficaram indiferentes aos gritos de “sangue e solo” — do “blut und boden” alemão utilizado pelos nazis que tinham da humanidade uma conceção de separação e apuramento racial — que ecoaram pela pequena cidade de Charlottesville durante horas. As cenas que a televisão mostrou, quase ininterruptamente, onde se via um mar de homens, uns encapuçados outros não, envergando cruzes, armas, tochas, bandeiras da Confederação e outras com cruzes suásticas, foram comparadas com cenas do século XIX.

As origens antigas da alt-right

A Guerra Civil nos Estados Unidos foi a semente dos distúrbios a que hoje assistimos, mas alguns analistas consideram que as raízes dessa árvore um dia frondosa acabariam por apodrecer, se não lhe tivesse sido injetada nova seiva, com o ressurgimento da extrema-direita mais vocal. “É bom não termos dúvidas do que é que falamos quando falamos de neo-nazis. São pessoas que não descartam o extermínio de outras raças, mas não são um fenómeno novo nos Estados Unidos. Começou, aliás, a crescer com a eleição de um presidente negro, o que perturbou imenso os supremacistas”, diz Jeff Anderson.

Entre 1861 e 1865, os Estados Unidos foram um campo de batalha dividido, sobretudo, por linhas raciais. De um lado os estados da Condeferação, maioritariamente os do sul — Carolina do Sul e do Norte, Mississipi, Georgia, Tennessee, Virgínia ou Alabama — e, do outro, os chamados “Estados livres”, onde a escravatura estava proibida. Foram anos violentos, que serviram de testemunha do surgimento de grupos extremistas como o Ku Klux Klan (KKK), marcadamente supremacista. Criado para tentar defender a todo o custo o privilégio dos brancos, ainda está claramente “no ativo” — como se viu em Charlottesville — e as suas fileiras estão a engordar. Metade de todos os núcleos do KKK formaram-se nos últimos três anos: há 42 grupos ativos em 22 estados. Eram metade no início de 2015, de acordo com a Liga Anti-Difamação, que monitoriza a atividade dos grupos extremistas.

"Ele fez o mais díficil, que era falhar uma comunicação tão simples. É um assunto complexo em si mas muito fácil de navegar politicamente: condena-se e ponto final. A reação do presidente não faz sentido nenhum, até porque os supremacistas não são assim tantos, são menos de 1% da população, pergunto-me que base eleitoral achou ele que estaria a alienar se condenasse estas pessoas"
Jeff Anderson, professor de História na Universidade de Georgetown em Washington com especialização em movimentos extremistas de influência alemã

Quando o presidente Abraham Lincoln declarou a Emancipação, quatro milhões de escravos negros foram libertados dos seus senhores. Mas uma coisa foi ser libertado, outra foi ser visto como igual só porque se era livre no papel. Durante o período da Reconstrução que se seguiu à guerra, as legislaturas do sul passaram os chamados “códigos negros”, uma série de leis que impediam que os homens negros tivessem de facto acesso às mesmas liberdades que os homens brancos: do voto à autorização de posse de propriedade, a liberdade ainda estava longe.

O governo federal interviu e o voto chegou finalmente a todos os norte-americanos: formaram-se advogados negros, congressistas, presidentes de câmaras. Menos de uma década depois, o Ku Klux Klan reverteu tudo isto e em 1977 os brancos tinham recuperado a supremacia no sul. Aconteceu quando os democratas — sim os democratas — conseguiram uma série de vitórias nos estados do sul e começaram a opor-se às leis aprovadas pelos republicanos que criminalizavam o terrorismo do KKK.

A “alt-right” é hoje uma espécie de ficheiro onde se arquivam as raivas e os ressentimentos de muitas décadas. “A história da alt-right tem origens muito antigas, tão antigas como a própria divisão racial dos tempos da Guerra Civil mas o que, nos meus estudos, consegui concluir, é que há dois fatores que levaram a que estas ideias se propagassem mais rapidamente nos últimos anos. A primeira é termos um Presidente que, durante a campanha e já na presidência, nunca se esforçou para se distanciar completa e inequivocamente dos nacionalistas e supremacistas que lhe ofereceram apoio. Ele devia enojar-se com esse apoio que repugna muitos republicanos”, diz o professor.

A segunda razão não tem sido tão falada: “A internet é uma coisa muito útil, mas é uma estufa para estes pensamentos: ali são alimentados e protegidos sem influência do mundo exterior que os repudia. Como é que se explica que os miúdos na América saibam tanto sobre os nacionalistas noruegueses ou os neo-nazis da Madrugada Dourada?”, pergunta Anderson.

"A internet é uma coisa muito útil, mas é uma estufa para estes pensamentos: ali são alimentados e protegidos sem influência do mundo exterior que os repudia. Como é que se explica que os miúdos na América saibam tanto sobre os nacionalistas noruegueses ou os neo-nazis da Madrugada Dourada?"
Jeff Anderson, professor de História na Universidade de Georgetown em Washington com especialização em movimentos extremistas de influência alemã

Nesta linha, Jeff Anderson vê outro sinal perigoso: o “repackaging”, que é o que acontece quando uma marca dá umas pinceladas no seu antigo logotipo para atrair novos consumidores. “A extrema-direita deu-se a ela mesma esse nome de ‘alt-right’ porque dizermos que somos do Klan ou que gostamos do Hitler não fica muito bem, e assim, com este revestimento de direita dos jovens rebeldes, que são apenas apaixonados patriotas preocupados com os desempregados do ‘Rust Belt’, até parece uma coisa social. Dizem que andam a lutar pelos direitos civis dos brancos, o que não cola, aqui. Eles são uma minúscula minoria”, diz o professor.

A (em breve) minoria branca

Se a demografia nos Estados Unidos continuar a mudar como até aqui, em 2055, os Estados Unidos serão um país sem uma maioria racial, de acordo com o Pew Research. Os imigrantes serão 45% da população. “Os brancos supremacistas têm medo que a forma de vida dos americanos e os seus valores sejam suplantados pelos valores dos negros e dos latinos, das mulheres, dos homossexuais, dos imigrantes, de tudo o que não é o que eles tradicionalmente conhecem, sem entenderem que os valores americanos tocam essa gente toda”, conta ao Observador Monica Donato, uma americana-italiana de Baltimore, com 24 anos, que faz parte do movimento Black Lives Matter da cidade.

Monica começou a preocupar-se mais com as questões raciais quando Freddie Gray, um jovem negro de 25 anos, morreu enquanto se encontrava sob custódia policial, com danos na espinha dorsal que ainda estão por explicar. Esta semana, durante a madrugada de quarta-feira, quatro estátuas alusivas à Confederação foram retiradas do centro da cidade, para não causar distúrbios, disseram as autoridades. Monica está contente com aquilo a que chama “limpeza” da cidade, mas tem medo que também Baltimore receba uma marcha da “alt-right”.

https://twitter.com/Scott_Gilmore/status/897582269308653568

“Não é tanto por mim, mas eles não sairiam daqui bem tratados, há mesmo muitos negros aqui”, diz ao Observador numa conversa pelo Skype. Mas como ela mesma estuda história, não é capaz de dizer que não existem grupos extremistas de esquerda, anti-fascistas violentos. “Claro que existem e destroem coisas e queimam lojas e tudo isso”, diz, mas, na sua opinião, o que está aqui em causa não é a violência esporádica de qualquer um dos lados, até porque “os tipos da ‘alt-right’ nem foram muito violentos em Charlottesville, só o assassino que guiou o carro”. O que está em causa, “é entender que estas estátuas representam uma época em que metade do país defendia a subjugação, a violência, o açoitamento, de uma parte da população norte-americana, dá para entender isso?”, pergunta.

Está “pesarosa e vergonhosamente consciente” do que foi Itália nos anos 30 e 40, é uma imigrante de segunda geração e os avós ainda lá estão. “É muito mais fácil do que as pessoas pensam deixarmo-nos cair no facilitismo de culpar o outro pelos nossos problemas, encontrar um inimigo externo, como fazem os regimes fascistas, porque não conseguimos atingir as coisas que queremos. Os homens brancos da minha idade que vejo nessas marchas fazem-me pensar: coitados, cresceram num país cheio de oportunidades e estão para ali a dedicar a vida ao aproveitamento da dor histórica e dos traumas dos outros. Se fossem inteligentes conseguiam vingar numa sociedade diversa, mas assim sendo…”

American Vanguard: millennials e mauzões

Mas a “alt-right” não é apenas o Ku Klux Klan, desses toda a gente se lembra e quase todos os repudiam. O problema são as dezenas de grupos marginais que perfilham algumas das linhas mais duras do KKK, como a divisão do país em zonas racionais ou mesmo o fim dos negros e dos judeus. O fim, como quem diz, uma solução final. Só dentro da categoria “neo-nazi”, o Southern Poverty Law Centre, a organização de denúncia da discriminação racial, identifica 40 grupos e aqui se incluem, por exemplo, o Aryan Nations, o Partido Nazi Americano, o Battalion 14, a Christian Defense League, a Nationalist Coalition, a New Order e o braço americano da Madrugada Dourada, que começou na Grécia. Dentro do grupo “ódio organizado”, estão mais de 50 organizações, incluindo o KKK e todas as suas sub-divisões. Ao todo são mais de 900 grupos nacionalistas e supremacistas em atividade nos Estados Unidos.

Josh faz parte da Vanguard America, tem 24 anos mas não aceita dar o nome verdadeiro nem a localidade, por medo de represálias das autoridades. É o que estará a acontecer a Christopher Cantwell, um dos protagonistas da reportagem viral da VICE em Charlottesville, em que, durante longos minutos, se gabou do seu racismo ser “bem maior do que o Presidente”, falou das armas que possuía e disse que a morte de Heather Hayer eram “pontos para nós”, os supremacistas. O mesmo que, mais tarde, apareceu num vídeo a chorar porque “apenas foi violento em defesa própria” e não queria “ir para a cadeia”.

Atualmente Josh está desempregado. Não podia pagar a universidade e vive em casa da mãe. O pai partilha algumas ideias parecidas com as dele. A mãe é enfermeira e conta-lhe histórias de violência, “sempre entre gangues de pretos e mexicanos” que “só fazem duas coisas: fabricar e vender droga”.

https://twitter.com/Vanguard_NY/status/824476564259766273

Muitos dos seus amigos, diz através de uma chamada do WhatsApp, “estão desempregados também” ou então “a receber ordenados terríveis em cenas tipo MacDonalds”. Não acredita em matar ninguém e não quer ser confundido com “nazis broncos”, mas gostaria de dividir as cidades em zonas raciais e de “fechar já as fronteiras a toda a gente que não seja branca” ou que não “venha da Europa com os mesmos valores de paz e catolicismo e união e família que nós”.

Jeff Anderson, que estuda a influência dos símbolos de supremacia branca no imaginário cultural dos Estados Unidos explica que “o cunho violento e a força que esses símbolos comandam, a ideia de rebeldia, de guerra, de ser parte de um propósito maior, apesar de, para a esmagadora maioria das pessoas serem hoje repugnantes e até patéticos, podem levar alguns jovens desempregados, rejeitados, deprimidos ou incompreendidos a desenvolverem o desejo de serem parte de algo tão violento, tão visceral”. O Southern Law Poverty Centre identificou e explicou alguns do símbolos que apareceram nos escudos, t-shirts e bandeiras da “alt-right” em Charlottesville:

Josh votou em Donald Trump e admite que “é mais fácil agora falar com as pessoas sobre coisas como a necessidade de limpar as ruas de todos os criminosos com a força e a autoridade a sério, porque agora as pessoas não têm tanto medo de falar” mas acha que o presidente não está “nem perto” do “radicalismo necessário à mudança”. Josh pensa que “a tolerância exagerada do ocidente a tudo o que é diferente, como se isso fosse sinónimo de bom”, vai destruir “o que até os democratas tomam como garantido”. Se não se “controlarem” os “animais” em breve “os turistas, os estudantes, os geeks do Silicon Valley, ninguém vai querer viver na América”.

Questionado sobre se tem consciência de que os símbolos expostos na marcha em Charlottesville remetiam para tempos terríveis onde as pessoas eram exterminadas apenas por não serem “alemães puros”, Josh diz que sim, que sabe perfeitamente o que é que foi o nazismo, mas não considera “necessárias” essas medidas, desde que haja “autoridade a sério” e com isso ele quer dizer “os militares na rua”.

Quem também fazia parte deste grupo era James Fields, que guiou o seu carro contra um grupo de pessoas em Charlottesville. Reação de Josh: “Esse porco só vai conseguir que as pessoas nos odeiem”.

A “alt-left” existe?

Por causa dos distúrbios em Charlottesville, e de terem ficado documentadas agressões de ambos os lados dos confrontos, alguns comentadores políticos — e o próprio Presidente — fizeram questão de lembrar que a violência nunca tem um só lado. Nasceu o conceito de “alt-left”, que tem sido usado para designar um conjunto de grupos considerados de extrema-esquerda como o Occupy, os Antifa (abreviação para “anti-fascista”), o Black Bloc e o Black Lives Matter.

Mas será que estes grupos representam o mesmo tipo de ameaça que a “alt-right”? “Manifestações mais violentas, ocupação de espaços públicos, danificar propriedade privada, é repreensível mas não é terrorismo interno”, disse J. J. MacNab, investigador do Programa de Estudo do Extremism na Universidade George Washington ao New York Times. Mas é possível encontrar episódios de extrema violência por parte da extrema-esquerda: o bombardeamento da sede do partido republicano na Carolina do Norte é um deles.

Os supremacistas, as milícias de extra-direita e os os ataques a clínicas de aborto fizeram muito mais vítimas do que qualquer ação dos grupos identificados como “alt-left”. A análise é do Instituto CATO, um grupo alinhado com a direita mais libertária, que defende a mínima intervenção do Estado na sociedade. Os grupos de extrema-direita foram responsáveis, desde o início do século XXI, por 12 vezes mais mortes e 36 vezes mais ferimentos do que os comunistas, socialistas, ativistas pelo ambiente, os membros do Black Lives Matter ou do Occupy, segundo um fact check do New Yor Times.

"O presidente Trump não está nem perto do radicalismo necessário à mudança"
Opiniões de Josh, um jovem que pertence à organização supremacista Vanguard America

Mark Pitcavage, analista da Liga Anti-Difamação, também considera o termo “alt-left” discutível. “O termo não foi desenvolvido e defendido pelas pessoas da esquerda, como foi o caso da ‘alt-right’. Não nasceu de forma orgânica e não se refere a um conjunto de grupos que defendem todos mais ou menos a mesma coisa. Mais importante que isso é que estes grupos de esquerda não consideram que uma raça seja inferior a outras nem advogam o domínio branco a qualquer custo”.

Daniela Johannes, professora de Estudos Latinos da Universidade de Chester, especializada no tratamento de minorias nos Estados Unidos desde a Guerra Civil americana, diz ao Observador que o vandalismo e violência de alguns membros da extrema-esquerda, embora não devam nunca ser colocados no mesmo patamar daqueles que “se passeiam com listas com suásticas presas nas mangas”, é o “falhaço do modelo capitalista atual, que faz com que alguns acumulem riqueza e outros acumulem falta de tudo”.

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