“Venceu o candidato mais misterioso. De mais difícil qualificação. Mais previsível, na vitória, mais imprevisível no comportamento. Na verdade, o que merece ser sublinhado é que tem as mãos livres. Pode fazer o que entender com o Governo e com os partidos que o apoiaram. Não se comprometeu, a não ser com princípios gerais e intenções bondosas. Venceu graças à reputação, não às ideias, que não exprimiu, nem ao programa, que não tornou claro. (…) [António Costa] deve julgar que ganhou. Mas desenganar-se-á rapidamente. Vai ter enormes sarilhos. Ele acha que tem [Marcelo] nas mãos e que este é sua alma gémea. E que com ele conta para as suas políticas duras. Em breve descobrirá que se engana.”

A melhor análise às eleições presidenciais de 2016 foi escrita por António Barreto, no Público (23/01/2006), a propósito da primeira eleição de Cavaco Silva (ao original, basta actualizar os nomes dos protagonistas). E não é por acaso: a estratégia de Marcelo passou sempre por repetir 2006. Tal como Cavaco, teve apoio oficial de PSD e CDS, mas recusou partidarizar a sua campanha. Manteve os olhos no eleitorado do centro. Foi o candidato à direita contra vários candidatos à esquerda e, mesmo assim, repetidamente apreciado como o melhor aliado institucional para o primeiro-ministro do PS em funções. Não teve programa que se visse, não defendeu ideias concretas, não arriscou tomar posições sobre o futuro e foi ambíguo quanto ao presente – bastou-lhe confiar na sua popularidade. E ganhou à primeira volta.

O caminho de Marcelo foi aquele que Cavaco desenhou. Mas a memória é curta, sobretudo em política. Só isso justifica que tantos à direita tivessem passado as últimas semanas amuados e com Marcelo atravessado na garganta. E que, por causa deles, a questão de alternativas de voto à direita fosse um tema de debate, quando pouco ou nada havia a debater. Até nesse ponto Marcelo foi um remake de Cavaco que, em 2006, foi tudo excepto consensual.

Ora, face a 2006, também no PS nada mudou. Insistiu-se no erro de uma dupla candidatura – uma mais institucional, outra mais lírica. E deixou-se uma personalidade de primeira linha do partido fazer uma triste figura (Soares que ficou em terceiro, em 2006, Maria de Belém que ficou ao nível dos pequenos, em 2016). Desta vez, o ridículo chegou ao nível do esvaziamento do PS, que ficou abaixo dos 30% – um desastre eleitoral que o excelente resultado da candidata do BE intensificou. Na verdade, agora como no passado, a liderança do PS comportou-se como se desejasse secretamente o institucionalismo do candidato à direita, sacrificando o partido com vista ao curto prazo da governação. António Costa, que não quis Maria de Belém e tolerou Sampaio da Nóvoa, pensa que ganhou com Marcelo – acha que o tem nas mãos e que este é a sua alma gémea política. No fundo, que pode contar com ele. Rapidamente se aperceberá que está enganado.

E digo que será rapidamente por uma razão simples. Apesar de serem eleições presidenciais, os equilíbrios partidários que suportam o governo de António Costa saíram abalados da noite eleitoral. Paralela ao bom desempenho do BE, a humilhação do candidato do PCP deixará marcas, reforçando o fosso que os separa no parlamento e pondo em causa a disponibilidade do PCP para apoiar o governo nas medidas difíceis. Os comunistas têm na “geringonça” um desafio à sua sobrevivência. E, se se tornarem por isso factor de instabilidade política, dificilmente Marcelo segurará António Costa.

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