Estavam mais de 30 graus. O Verão anunciava-se em forte. Eu desembarcava na estação do Oriente. Ou mais propriamente eu ia trocar de comboio na estação do Oriente. Num dos cais filas de pessoas arrumavam-se diante dos postes, como se tivessem sido colocadas de castigo.

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Tudo aquilo parecia absurdo: o artigo que acabava de ler, as filinhas indianas diante dos postes, o calor de que Lisboa é capaz, a estação alegadamente tão moderna mas tão moderna que uma pessoa em cadeira de rodas ou com uma simples mala se vê e deseja para conseguir subir e descer dos comboios. Isto para não falar da epopeia que representa descer à gare propriamente dita, onde o arquitecto Calatrava (que a terra nunca lhe seja leve quando o tiver de receber!) concedeu que fossem construídas umas salinhas de espera mas ainda não nos deu a mercê de deixar colocar letreiros com o número de cada cais bem visível.

E foi assim que, depois de deambular no meio da mais ilegível sinaléctica do mundo ferroviário, acabei também eu no cais das pessoas imóveis viradas para os postes. Enquanto não me decidia sobre se devia integrar ou não tão insólitas filas, optei por voltar ao artigo que o Expresso publicara um ou dois dias antes, creio que para grande divertimento da pátria, à qual já tudo parecia possível naquele tour em que o primeiro-ministro e o Presidente da República pareciam andar a brincar aos “elderes”. Só lhes faltava a tabuleta ao peito! Tinha acabado a visita de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa à exposição de Amadeo de Souza-Cardoso: “o primeiro-ministro já falara à imprensa, o Presidente também e os jornalistas tinham ido tratar das suas peças. E eis senão quando António Costa, que desaparecera por momentos da vista da comitiva, reaparece com um envelope do museu na mão e o oferece a Marcelo. O Presidente ficou surpreendido, não esperava o gesto, mas Costa pediu-lhe para abrir: dentro do envelope, um postal com uma réplica do célebre quadro de Souza-Cardoso “O Salto do Coelho”. “Há uns que saltam, outros não”, comentou Costa, segundo relatou ao Expresso um dos presentes. E o Presidente, por uma vez, ficou sem resposta: “Isto não posso comentar, não vou falar”, disse apenas, perante a gargalhada das comitivas.”

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Cardoso-Salto de Coelho

Note-se, as comitivas gargalharam. Podiam ter vomitado, porque de facto a situação era de um vómito alarve, mas gargalharam. Gargalharam diante de um primeiro-ministro que não se enxerga nem enxerga além duma visão piadeticamente boçal do mundo e das instituições. Um primeiro-ministro que não resiste a tentar fazer uma graçola entre o nome do líder de um partido português, por sinal o líder que ganhou as eleições que ele Costa perdeu mas até podia ser o líder do partido menos votado da AR que a graça continuava a não ter graça alguma. Um primeiro-ministro que se acha tão engraçado que, e mais uma vez a fazer fé no artigo do Expresso que não vi desmentido em parte alguma nem causou zanga nas “redes sociais” (os saneamentos da ex-ministra Canavilhas ao pé disto são de uma delicadeza poética), fez questão de que o Presidente da República abrisse ali mesmo o envelope. Podia lá perder-se o efeito surpresa daquela sua graça tão esperta que, diante do Presidente da República, lhe permitia sair-se com aquele “Há uns que saltam, outros não”. E um Presidente da República que face ao despautério declara como se estivesse sentadinho na TVI “Isto não posso comentar, não vou falar”.

E eis que perante o número da esperteza do Primeiro-Ministro e face ao Presidente da República que se vê como comentador-mor do reino da simpatia, as comitivas gargalharam.

O nojo que “a gargalhada das comitivas” me inspirava – presumindo eu pela notícia que tanto gargalhou a comitiva do Primeiro-Ministro como a do Presidente da República – era acentuado pela temperatura tórrida que se fazia sentir no cais. Foi então que se me tornaram óbvias duas coisas. A primeira, o porquê daquelas pessoas imóveis de cara virada para os postes. Elas abrigavam-se do sol nas únicas sombras existentes em todo aquele imenso cais pois Calatrava, pago regiamente pelos contribuintes portugueses (clique-se por exemplo aqui e vá-se à página 96 para perceber de que ordem de valores falamos) não concebera que os passageiros tivessem de se abrigar dessas coisas que afectam o povo como o frio ou, no caso, o sol. A segunda coisa que, qual epifania, se me tornou óbvia naquele cais infernal é que as criaturas das comitivas gargalhantes e respectivos chefes, precisam de rir pois no dia em que pararem de rir vão ver-se como realmente são. E como Amadeo os representou num quadro a que chamou “Palhaço, Cavalo, Salamandra”.

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Entretanto, na estação do Oriente, uma voz anunciava a chegada de um comboio ao cais onde, quais baixos-relevos egípcios que tivessem ganho vida, os seres até aí perfilados à sombra dos postes se dirigiam para as portas das carruagens donde os menos ágeis ou mais carregados lutavam para sair.

E a mim, apetecia-me perguntar se não havia um comboio que nos levasse para um Portugal que não fosse afectado por esta crise de valores e das instituições, a única e verdadeira crise que existe. Pois das crises do dinheiro sai-se depressa. Mas esta, a dos valores, mina, destrói e corrói a sociedade. Quero acreditar que apesar de tudo a cozinha de Manhufe não será tocada por este lodo.

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