Sempre que se fala em classe média, a generalidade do comentariado político nacional revela uma imensa dificuldade em lidar com um dos mais simples conceitos estatísticos: a média. Mais interessante, ninguém se considera privilegiado. É fácil de perceber porquê, como qualquer pessoa tem amigos mais pobres e mais ricos, cada uma considera-se como fazendo parte da classe média. Confundem a realidade com a sua realidade.

Talvez isto explique que tantos e tantas se tenham indignado com a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) que o governo anterior aplicou às reformas de mais de 4600€, atingindo em especial as pensões superiores a 7100€ mensais (taxadas em 40% na parte superior a este montante). A indignação foi tanta que a actual maioria já acabou com a CES no Orçamento do Estado de 2017.

Mas qual é então a realidade? Há poucos números que nos permitam caracterizar toda a população portuguesa. Mas, felizmente, há uma excelente base de dados com as remunerações dos trabalhadores por conta de outrem, “Os Quadros de Pessoal”. Aqui temos informações sobre mais de 2 milhões e 500 mil pessoas que trabalham no sector privado. Infelizmente, como também é típico em Portugal, esta incrível transparência que é exigida ao sector privado não tem correspondência na informação prestada pelo Estado. Assim, não temos estes dados nem para a função pública, nem para as pensões em Portugal. De todo o modo, esta informação sobre o sector privado permite-nos, com alguma segurança, balizar o que se poderá entender por classe média em Portugal. É evidente que a inclusão dos funcionários públicos e empresários ricos puxaria as médias para cima, mas a verdade é que também não incluo nem as centenas de milhares de desempregados nem os dois milhões de pensionistas que recebem pensões inferiores ao salário mínimo, nem a geração dos recibos verdes, que engloba perto de um milhão de trabalhadores, que puxariam a média bem para baixo.

Em 2015, o salário base era, em média, 914€ brutos. Se incluirmos outras remunerações além do salário base — como, por exemplo, algumas componentes variáveis como prémios —, a média é de 1097€ (1200€ para os homens e 960€ para as mulheres). Repare-se que estamos a olhar para a média das remunerações e não para o trabalhador médio. Se quisermos saber quanto ganha o trabalhador médio, devemos utilizar a mediana das remunerações. E essa é 300€ inferior à média, ou seja é inferior a 800€. Uma análise mais fina permite-nos saber que apenas um décimo dos trabalhadores ganha mais do que 2000€ por mês (e friso que todos os valores que aqui apresento são ilíquidos). Assim, talvez seja mais fácil de entender por que motivo Mário Centeno, no início do ano, referiu que “uma pessoa que tem um rendimento bruto de 2000 euros por mês está numa posição da distribuição de quem paga impostos em Portugal altamente privilegiada.” Estas declarações de Mário Centeno causaram muita celeuma, mas estão, essencialmente, correctas, por muito que os comentadores das televisões e jornais gostem de achar que fazem parte da classe média.

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Os Quadros de Pessoal dividem os trabalhadores em 8 categorias quanto às suas qualificações, que vão dos Quadros Superiores aos Estagiários e Aprendizes, passando pelos Profissionais Qualificados e Altamente Qualificados. Remunerações médias superiores a 2000€, só os Quadros Superiores. Isto se forem homens (2700€). Porque se forem mulheres ganham apenas 1950€. E se olharmos para as qualificações académicas, vemos que apenas os doutorados ganham em média mais de 2000€. Mestres, licenciados, bacharéis e tudo o resto ganham (bem) menos.

Neste momento, terei vários leitores indignados por estar a confundir o conceito sociológico de classe média com uma medida estatística. Infelizmente, não há consenso sobre qual o conceito sociológico de classe média. Tipicamente, pega-se numa definição razoável para países como a Noruega, a Alemanha ou a Suíça e aplica-se, sem mais, a Portugal. Uma das definições mais comuns é considerar que tudo o que fica entre a alta-burguesia (empresários de sucesso) e as classes populares (o operariado) é classe média: quadros superiores, professores universitários, médicos, juízes, advogados, directores de jornais, etc. Todos fazem parte da classe média (eventualmente, classe média-alta). Ou seja, chama-se classe média à elite que nos governa. É neste mundo que vive grande parte dos opinion makers portugueses, daí a surpresa quando Mário Centeno lhes diz que quem ganha 2000€ está no escalão superior dos rendimentos, ou quando Sócrates lhes dizia que os cortes nos rendimentos acima de 1500€ dos funcionários públicos ou dos pensionistas eram cortes que atingiam as classes de mais elevados rendimentos.

Não surpreende assim que, de vez em quando, apareça um comentador totalmente alienado do mundo real. Tão alienado que diríamos que vive noutro planeta. Foi o exemplo, há uns anos, de Diogo Leite que nos explicou que alguém que ganha dez mil euros por mês faz parte da classe média (ou mesmo classe média-baixa, dado que não chega sequer para o consumo).

Apesar de tudo, não estava preparado para o último artigo de Vasco Pulido Valente. Para Pulido Valente, o Natal da Classe Média em 1950, quando Portugal era um país miserável, era passado a uma “mesa de oito metros com tampo de mármore e pés dourados” em casa da avó, “que vivia como no fim do século XIX, com dama de companhia e três criadas”. Isto num dos lados da família. Do outro, “toda a gente se vestia de cerimónia e toda a gente tinha um lugar à mesa”. As “senhoras de maneira geral não abriam o bico, porque o [seu] avô não deixara ainda o século XIX. Aos genros, sendo médicos, era permitida uma ou outra palavra. Ao [seu] pai, engenheiro químico, ninguém concedia qualquer espécie de autoridade.” Isto, para Pulido Valente, é representativo da classe média de 1950. Dispenso-me de apresentar quaisquer estatísticas que caracterizem a vida do português médio nessa época, quando a escolaridade média era inferior a 3 anos. Direi simplesmente, como escreveu uma amiga no Facebook, que alguém anda a precisar de umas aulas de estratificação social.

Enfim, todos sabem que os economistas são ignorantes e incultos e que nem de economia percebem. Cometem erros básicos como confundir classe média com rendimentos médios. Mas ao menos os economistas têm consciência de que vivem num planeta onde a classe média não tem três empregadas e dama de companhia. Não confundem a média da sua classe com a classe média.