Vamos fazer um exercício. O que diria o caríssimo leitor se lesse num grande jornal americano uma crónica de um académico branco, votante de Trump, perguntando no título ‘Podem os meus filhos ser amigos de pessoas de cor’? E que lá no corpo do texto apanhasse frases do calibre das seguintes.

‘Vou ensinar [aos meus filhos] a serem cautelosos, vou ensinar-lhes suspeição, vou ensinar-lhes desconfiança. Mais cedo do que pensava, terei de discutir com os meus filhos se podem verdadeiramente ser amigos de afro-americanos.’

‘Poupem-me as platitudes de que por dentro somos todos iguais. Primeiro tenho de manter os meus filhos em segurança.’

‘Não escrevo isto com condescendência conservadora nem prazer. O meu coração está intoleravelmente pesado quando vos asseguro que não podemos ser amigos.’

Apesar de no fim do texto o autor escrever qualquer coisa na linha ‘eu até tenho amigos afro-americanos (mas dos bons, que não se drogam, não roubam, nem vivem dos cupões alimentares)’, para assegurar que, na verdade, é um tipo bestial sem réstia de preconceito, qual seria a reação? Não me parece excessivo supor que seria um escândalo e o autor insultado por todo o lado como o maior racista vivo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Pois bem, as fases e o título são traduções desta coluna de opinião do New York Times, com a cor de pele e o posicionamento político do autor alterados. Assim já não há problema, pois não? Como é um professor universitário afro-americano a proclamar que os brancos não são dignos de amizade (a não ser que se esforcem muito, e sempre de pé atrás a ver se não lhes escapa nenhum ato compulsivo de solidariedade com a sua raça), que o melhor é os seus filhos perceberem cedo que não se devem dar com gente dessa laia – está tudo bem, certo?

O autor não afirmava ser impossível a amizade com trumpistas, ou sequer com republicanos – o que já seria infantilidade, mas pronto, estaria pelo menos a avaliar as pessoas pelas decisões políticas que tomam e pelos valores. Ana Drago um dia também disse que não tinha amigos de direita. Há lunáticos em todo o mundo desenvolvido e por desenvolver. Não: é qualquer pessoa branca por defeito. Racismo, aventariam os distraídos.

É certo que os afro-americanos não sararam a escravatura, a segregação nos estados sulistas, e, sobretudo, as consequências económicas atuais de gerações atrás de gerações pobres e sem muita educação formal. Há razões de queixa. Tal como há razões de queixa dos brancos, à conta da criminalidade ou dos problemas sociais criados pelo colapso das famílias afro-americanas, com pais presos ou voluntariamente ausentes da vida (e do sustento) dos filhos e mães descasadas com filhos de vários pais.

No entanto escapa-me onde esta retórica de apelo à segregação é benéfica. Não obstante, os ativistas aparentam estar viciados nela.

A apropriação cultural é outra maravilha do mundo moderno. Numa universidade do Massachussetts duas estudantes brancas foram atacadas porque – crime hediondo – tinham tranças no cabelo e isso é apropriação cultural. A filha de Kate Moss fez publicidade para um cabeleireiro londrino de tranças e logo a Teen Vogue lhe estendeu o dedo acusatório. Rastas? Persigne-se e desista de desrespeitar a cultura alheia.

Isto é tão ridículo que nem se consegue discutir seriamente. Penteados diferenciados por raças – como é que ninguém se tinha lembrado? É que nem se trata de uma tentativa de contenção das pilosidades cranianas de Kim Jong-un na Península Coreana.

Sempre supus que usar elementos estéticos de outra cultura fosse um tributo. É um reconhecimento da capacidade do outro criar algo desejável. Sempre olhei para a História e vi como bons os períodos de trocas e contactos entre as diferentes partes do mundo. Uma marca de roupa espanhola, de que gosto muito, há uns anos apresentava etiquetas nas peças rezando ‘feito na Índia, desenhado em Espanha, inspirado em todo o lado’. Este é um género de universalismo que me apela.

Porém, nestes tempos minados, tudo terá de ser uma usurpação. A tempura japonesa é uma apropriação cultural dos portugueses peixinhos da horta. O lápis preto que uso nos olhos todos os dias é uma apropriação cultural do khol indiano. Aqueles ocidentais que se mudam para a Tailândia e lá ficam a viver trajados de sarongs e misturando-se com a população local? Uns racistas imperialistas a explorar os recursos criativos dos thai. Europeus que ponham umas capulanas merecem ser chicoteados num pelourinho. Ah, claro, ninguém a converter-se a religiões que proliferam a mais de cinquenta quilómetros do local de nascença de cada um.

Estou neste momento a iniciar uma petição para abandonarmos na Europa a numeração árabe e passarmos a usar (orgulhosamente) os números romanos. Vão se faz favor a minha casa destruir as aguarelas chinesas que exibo nas paredes. Mas atenção. Está muito bem as mulheres negras esticarem o cabelo. E usarem minissaia, que foi inventada por uma inglesa quiçá de ascendência saxónica ou viking.

O racismo e as suas consequências são demasiado graves para estarem representados por estas questiúnculas diletantes. Se as próprias minorias defendem segregação social e cultural, os do outro lado que pretendem o mesmo esfregam as mãos de contentamento.