Sou profundamente de direita e sou profundamente anti-salazarista. E as razões principais são as mesmas.

Grande parte das esquerdas, tal como o Estado Novo, lidam muito mal com a liberdade. Um dos grandes mitos da história política portuguesa apresenta as esquerdas a lutarem pela liberdade contra o salazarismo. Falso. Absolutamente falso. O PCP e as várias esquerdas que hoje se encontram no Bloco de Esquerda opunham-se ao Estado Novo mas queriam chegar ao poder para impor uma ditadura aos portugueses. Seguramente, mais violenta do que a do Estado Novo. Vejam os regimes políticos que formaram as nossas esquerdas. No caso do PCP, a União Soviética e Estaline, um dos maiores facínoras do século XX. Hoje, o PCP ainda apoia regimes como o da Coreia do Norte. Nunca algum português ouviu os comunistas condenarem

Estaline. Ouvir estes camaradas falar de liberdade é cómico ou trágico. As esquerdas bloquistas também apoiaram todo o tipo de ditaduras do proletariado, desde a China de Mao à Albânia. Mais recentemente, tornaram-se os grandes defensores do regime de Hugo Chavez na Venezuela. Uma ditadura que levou o país à guerra civil, como estamos a assistir. Mas a Venezuela tornou-se um dos silêncios mais incómodos da discussão política portuguesa. Já alguém ouviu os nossos grandes defensores da “liberdade” denunciarem o regime chavista?

Estas forças políticas, que apoiaram alguns das ditaduras mais brutais do século XX e que ainda hoje apoiam os restos desses totalitarismos, estão no poder em Portugal. Sei que muitos já não levam o PCP e o BE a sério. Desvalorizam as suas doutrinas políticas como irrealistas, por isso separam o discurso da práctica política. Eu levo-os a sério e acho que aqueles que os desvalorizam mostram alguma ingenuidade, ou arrogância.

Ainda me preocupo mais porque muitos traços da cultura anti-liberal e anti-democrática, imposta ao nosso país por cinco décadas de salazarismo, sobreviveram a décadas de democracia. Os regimes políticos são obviamente diferentes e as diferenças são profundas. Vivemos numa democracia pluralista e não numa ditadura. A economia de mercado é, apesar de tudo (já lá iremos), mais livre do que a economia controlada do Estado Novo. Mais importante, estamos integrados na Europa, e deixámos de ser uma ilha solitária isolada do resto do mundo. As escolhas de vida são múltiplas e não subordinadas a uma moral rígida e hipócrita.

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Uma das coisas que mais me irrita nos saudosistas do Estado Novo é a mistura de arrogância com provincialismo. Mas, apesar da diferença de regimes, a nossa democracia continua a coexistir com heranças salazaristas. As quais estão bem visíveis nos dias de hoje.

Veja-se, por exemplo, como o poder político lida mal com instituições independentes. Se não estivéssemos na União Europeia, o Banco de Portugal já teria deixado de ser independente há muito tempo. A presidente do Conselho de Finanças Públicas, Teodora Cardoso (uma pessoa de esquerda), foi alvo de ataques miseráveis só porque levantou questões sobre o modo de combater o défice. O Tribunal Constitucional (sim, o Tribunal Constitucional) foi atacado por dirigentes do PS por ter levantado dúvidas sobre os gastos nas últimas eleições internas dos socialistas. Estes são apenas os casos mais visíveis. Mas a tendência controladora alarga-se a outros níveis do Estado.

As empresas e os institutos públicos contratam através de concursos viciados e usando critérios políticos ou de proximidades pessoais. As esquerdas apropriaram-se do Estado. A geringonça reforça essa apropriação e alarga-a ao BE. A geringonça foi feita para o PCP preservar o poder dos seus sindicatos e o BE entrar de um modo mais sistemático no Estado. Hoje, o Estado em Portugal não é neutral nem serve os interesses dos portugueses. É um Estado socialista ao serviço do poder e da influência dos partidos de esquerda.

O mais grave é que o país, tirando um sobressalto aqui e um protesto ali, aceita esta situação. Em Portugal, não há uma cultura de independência institucional e de resistência ao arbitrarismo ao poder do Estado. E as esquerdas sabem que o país aceita e não resiste. Por isso, não param na sua conquista do Estado.

A apropriação do aparelho do Estado para fins partidários e particulares é a mais grave das heranças salazaristas mas não é a única. A dependência dos grupos empresariais em relação ao Estado é igualmente um legado do passado que persiste em sobreviver. Com algumas notáveis excepções, como por exemplo Belmiro de Azevedo e Soares dos Santos, os empresários portugueses preocupam-se sobretudo em integrar viagens ministeriais e em serem recebidos pelos primeiro-ministros. Independentemente das políticas económicas, os apoios políticos da generalidade dos empresários portugueses resultam do número de visitas a São Bento. Na relação entre o governo e os empresários, mantém-se muito do que definia o Estado Novo.

Quando nos aproximamos de mais um 25 de Abril, 43 anos depois da Revolução de 1974, há heranças preocupantes do Estado Novo que vivem entre nós. Ao contrário do que diz o discurso oficial do nosso regime, as esquerdas são as que mais beneficiam dessas heranças. Até porque as direitas cada vez que tenham a mesma tentação são imediatamente acusadas de “fascistas” e recuam. Mais: as esquerdas fazem o que for necessário para preservar as heranças salazaristas na medida em que servem o seu poder.

Eis uma das grandes ironias do pós-25 de Abril. Se a nossa democracia não se afastou mais do Estado Novo foi por responsabilidade das esquerdas. Não foi por causa das direitas. Muitos dirão que as heranças que apontei não têm nada a ver com o Estado Novo, mas sim com a natureza do país e dos portugueses. Mais uma herança do salazarismo. Era o que dizia Salazar para impedir a democratização e a abertura de Portugal.