Há décadas que me desliguei dos festivais da canção. Por nada em especial, apenas por estar distante da linha musical deste tipo de concursos. Via-os quando era criança, por ser um programa animado e familiar, mas isso já foi há mais de quarenta anos. Desta vez também não vi nada, e nem sequer assisti à final, mas acordei na segunda-feira com a notícia de que o Salvador Sobral tinha ganho o festival.

Fui ouvir a sua canção e ver os vídeos de alguns dos outros concorrentes, para perceber como é que um músico como o Salvador Sobral tinha chegado a este festival. Nunca tinha pensado nele neste formato, nesta lógica. Ouvi e voltei a ouvir a sua canção e, sinceramente, comove-me que tenha sido o grande vencedor. Também comove a história da letra desta canção, escrita pela sua irmã Luísa Sobral, que admite tê-la feito a pensar na voz do seu irmão. Na sua voz de anjo, meio rouca-meio infantil.

Tanto quanto percebi, a decisão final não foi tomada por um júri eleito para o efeito, mas por cidadãos comuns. Pessoas que ouviram e votaram por telefone, tal como fazem noutros concursos e séries televisivas. Se, por um lado, me surpreende que o Salvador Sobral tenha ganho um festival da canção, por outro comove-me a certeza de que a sua música, a sua voz, a sua paixão e a sua entrega não passam despercebidas a ninguém.

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Todas as fibras do Salvador Sobral são fibras musicais. Quem o ouve e acompanha desde que começou a cantar em público, sabe que é um fora de série. Sempre houve e haverá músicos extraordinários, e muitos são tão bons ou melhores que ele, mas o Salvador Sobral é uma combinação rara de talentos e dons. Cantar é, para ele, uma necessidade tão vital como respirar. Usa a voz como quer e atira com ela para onde quer.

Impressiona muito a capacidade vocal do Salvador Sobral, e todos os fãs esperam sempre que ele a use, também, para imitar instrumentos. Já fui a incontáveis concertos, e já o ouvi muitas vezes tocar trompete sem nenhum instrumento musical para além da sua própria voz. Tal como eu, muitos outros já o ouviram fazer duetos com verdadeiros trompetistas, e assim como eu, votariam nele de olhos fechados se se tratasse de eleger o melhor trompete da noite. E, no entanto, o que ele faz chama-se ‘air trumpet’ e passa por improvisar com a voz, usando as mãos e a respiração como se realmente estivesse a tocar trompete. Genial.

Não sei se a canção que deu a vitória ao Salvador Sobral neste festival era a melhor de todas, mas sei que era importante que todos os portugueses e, de certa forma, todo o mundo pudesse ouvir a sua voz. A maneira como canta as suas músicas e interpreta as canções de outros é absolutamente apaixonante. Ouve-se e nunca mais se esquece, mas atrevo-me a dizer que tão importante como a música do Salvador é o seu amor, a sua paixão pelo que faz. Existe porque canta, e canta para poder existir.

Conheci o Salvador Sobral há uns anos, num concerto do Festival Zimp, um dos muitos festivais de Verão que se organizam por todo o país. Havia gente sentada e deitada na relva, à espera que os músicos chegassem. Nessa altura, o Salvador Sobral era mais novo e menos conhecido. Entrou no palco com o Henrique Janeiro (outro que nasceu para a música!) e, juntos, cantaram e tocaram numa sintonia mais que perfeita. As pessoas que os conheciam e já os tinham ouvido tocar esperavam muito, mas penso que ninguém esperava tanto daquele fim de tarde.

No final do concerto todos soubemos que tínhamos assistido a um momento inaugural, verdadeiramente especial. Tivemos a certeza de que aqueles dois jovens músicos rapidamente se revelariam ao mundo e fariam carreiras fulgurantes. Na verdade cada vez que cantam ou tocam, ganham milhares de fãs. Juntos ou sozinhos, enchem concertos e esgotam salas.

Agora, que o Salvador Sobral ganhou o festival da canção com uma canção nada ‘festivaleira’ e, com isso, deu um novo alento a um concurso cujo modelo me parecia estafado, podemos todos ficar mais próximos e mais atentos. Não falo apenas desta canção em especial, que é muito bonita e vai certamente fazer o seu caminho, mas de todas as outras que o Salvador vai compor e cantar pela vida fora.

Não tenho uma dúvida de que haja o que houver, a grandeza do Salvador vai-se notar sempre na sua voz, vai transparecer sempre na sua música, vai-se ouvir nos incríveis sons que cria e recria a toda a hora, pois o Sal Sobral é um daqueles raros homens que transformam em música tudo o que trazem em si.