Está a ser um mês e meio de caminhada pelo deserto na política espanhola. Na sexta-feira cumpriram-se 40 dias desde que as eleições legislativas em Espanha deixaram o país num impasse político de que não parece haver saída fácil.
O que aconteceu desde as eleições?
O cenário tem tanto de inédito como de curioso. O PP ganhou as eleições de 20 de dezembro, mas os 123 deputados que agora elegeu são muitos menos do que os 186 de 2011 e, mais importante do que isso, não chegam para a maioria absoluta (176). Com estes dados como pano de fundo, Mariano Rajoy foi dizer ao rei Felipe VI que não aceitava formar governo. “Disse-lhe que neste momento não estou em condições de me apresentar. Não lhe disse que não à minha investidura”, explicou o ainda primeiro-ministro em conferência de imprensa.
Isto, nas palavras do líder socialista Pedro Sánchez, foi “um passo ao lado”. Não aceitar o convite do rei para formar executivo é coisa que nunca tinha acontecido na História de Espanha e ninguém contava com isso. Pedro Sánchez certamente não contava. O secretário-geral do PSOE sabe que o partido teve o pior resultado de sempre numas legislativas (apenas 90 deputados eleitos) e que qualquer tentativa para chegar ao poder terá de se alicerçar noutras forças políticas, mas estava a contar com a tentativa de investidura de Rajoy (antecipadamente condenada ao fracasso) para ganhar tempo em negociações e legitimar uma alternativa ao PP.
Ora, o gesto de Rajoy voltou a baralhar tudo e deixou a política espanhola numa espécie de limbo. Depois do “não” ao rei, o líder popular ouviu um “não” de Sánchez. Alegando que teve mais de sete milhões de votos, Mariano propõe-se a criar um governo “moderado e sensato” com a ajuda dos socialistas. A mais recente oferta ao PSOE era uma troca por troca. Os socialistas apoiavam um governo Rajoy e os populares apoiavam o PSOE em todas as câmaras municipais e regiões nas quais o partido de Sánchez está atualmente dependente do Podemos. A resposta do PSOE, já dissemos, foi “não” — e originou uma curiosa guerra no Twitter.
¿Qué opciones hay ahora?
1⃣ Un gran acuerdo por la moderación
2⃣ Radicalismo
3⃣ Nuevas elecciones
@marianorajoy pic.twitter.com/3B4TZoA2Vq— Partido Popular (@ppopular) January 29, 2016
Que opções há agora? Um grande acordo pela moderação; radicalismo; novas eleições
Algunos tienen que decir si apoyan un gobierno moderado u optan por la coalición radical. Yo estoy por unir y no por desunir a los españoles
— Mariano Rajoy Brey (@marianorajoy) January 29, 2016
Alguns têm de dizer se apoiam um governo moderado ou se optam por uma coligação radical. Eu estou pela união e não pela desunião dos espanhóis.
¿Qué parte del no, no ha entendido Rajoy? Desbloquee la situación: o se presenta o deje que intentemos un Gobierno progresista y reformista.
— Pedro Sánchez (@sanchezcastejon) January 29, 2016
Que parte do “não” é que Rajoy não entendeu? Desbloqueie a situação: ou se apresenta [à investidura] ou deixe que tentemos um governo progressista e reformista.
O que está em cima da mesa?
Um governo “moderado e sensato”? Um governo “progressista e reformista”? O que é que isto quer dizer? Basicamente, a primeira opção é um bloco central e a segunda é uma solução à portuguesa, em que os socialistas se entendem com forças à sua esquerda.
Pelo que já disse Pedro Sánchez, para ele uma gran coalición está fora de questão. Nisso, é apoiado pelos companheiros de partido, mas nem tudo é pacífico no PSOE. Já lá vamos. Antes, algumas contas.
- De um ponto de vista puramente matemático, o bloco central era a solução que mais depressa resolveria o impasse político. Juntos, populares e socialistas têm 213 deputados, mais do que os 176 necessários para uma maioria absoluta.
- PSOE + Podemos: 159 deputados
- PSOE + Podemos + Izquierda Unida: 161 deputados
- PSOE + Ciudadanos: 130 deputados
- PP + Ciudadanos: 163 deputados
Explicámos isto logo na noite das eleições e a situação mantém-se inalterada, 40 dias depois: o PP recusa-se a negociar com partidos separatistas, mas o PSOE, se quiser mesmo governar, terá de recorrer a eles. Eis um exemplo.
- Se conseguir convencer o Podemos, o Democracia e Liberdade e a Esquerda Republicana (catalães), consegue 178 deputados
E a Catalunha no meio disto?
“Rajoy é o Red Bull dos independentistas porque lhes dá asas”. A frase consta de uma entrada do blogue de Pedro Sánchez, que a repete noutra entrada, de outro dia. O parágrafo resume bem a encruzilhada em que estão os socialistas:
Reiterei que Mariano Rajoy é o Red Bull dos independentistas porque lhes dá asas. Também falei da aposta do Podemos pelo direito a decidir. Nós, socialistas, queremos decidir, mas não uns por todos, todos por todos. Direito a decidir, sim. Nós, socialistas, não nos negamos a votar, mas queremos que votem todos os espanhóis. Queremos que se vote por um acordo e não uma fratura, como propõem os que defendem o direito a decidir”.
Um dos pontos centrais de toda esta questão é a Catalunha. Nessa região, o Podemos apresentou-se a votos coligado com outras forças políticas de esquerda e comprometeu-se a promover um referendo sobre a independência catalã. O tal “direito a decidir” de que Pablo Iglesias não abdica e que Pedro Sánchez não pode admitir, até porque foi proibido pelo Comité Federal do PSOE de sequer pensar em sentar-se à mesa com partidos que defendam essa opção.
(Entretanto, e pondo fim a um impasse que durou mais de três meses, a Catalunha já tem governo. O novo presidente da Generalitat é da coligação Juntos Pelo Sim e foi apoiado pelo partido anticapitalista CUP, que recusava a continuidade do anterior chefe de governo no cargo. O protagonista mudou, o propósito não: Carles Puigdemont já disse que a independência da Catalunha é um objetivo a cumprir nos próximos 18 meses.)
Mas esse não é o único problema no PSOE, pois não?
Não.
Este sábado, 41 dias depois das eleições, os socialistas reúnem de novo um Comité Federal e Pedro Sánchez só tem uma garantia, a de que o partido está dividido em dois. De um lado há uma fação, que ninguém parece saber quão grande é mas que tem figuras ilustres à cabeça, que torce o nariz aos acordos com o Podemos e com os partidos independentistas. Do outro, o grupo daqueles que sabe que a única hipótese de o PSOE formar um governo estável passa por um entendimento com o partido de Pablo Iglesias, que se ofereceu para ser vice-primeiro-ministro num executivo de Sánchez. Uma das certezas do Comité Federal deste sábado é a de que vai ser apresentada uma moção para impedir que um eventual governo socialista tome posse com os votos favoráveis ou mesmo a abstenção de partidos que advogam a independência de alguma região. Caso seja aprovada a moção, algumas forças políticas catalãs e bascas deixam de contar para soluções governativas.
Do grupo dos que aconselham Sánchez a afastar-se de Iglesias faz parte o ex-primeiro-ministro socialista Felipe González, que numa entrevista ao El País aproveitou para disparar em muitas direções.
- Primeiro alvo — Mariano Rajoy:
“Ninguém tem direito a dizer ao chefe do Estado nem que aceita nem que se retira, como fez Rajoy. É de uma irresponsabilidade difícil de qualificar”
“O PP não leu o resultado como é: uma derrota. Não só por perder 60 deputados, mas também pela sua rejeição no Parlamento”
- Segundo alvo — Pedro Sánchez:
“A leitura errónea também afeta o PSOE, que sofreu uma derrota clara e deveria ter considerado a vontade dos cidadãos”
“Parece-me indiscutível que se dialogue com o PP”
Significa isto que o ex-líder socialista defende um bloco central? Nem por isso…
“A proposta de uma grande coligação PSOE, PP e Ciudadanos nasce de um fracasso e não se imagina a governabilidade a médio prazo”
- Terceiro alvo — Pablo Iglesias:
“Os dirigentes do Podemos, em relação aos seus votantes, querem liquidar, não reformar, o marco democrático de convivência e, ao mesmo tempo, [liquidar] os socialistas”
Podemos atua a partir de posições parecidas as dos seus aliados na Venezuela, mas escondem-no de maneira oportunista. São puro leninismo 3.0″
As opiniões de Felipe González têm eco junto dos chamados “barões” do PSOE. À cabeça, Susana Díaz, presidente do governo regional da Andaluzia, que foi das primeiras pessoas, logo a seguir às eleições, a avisar Sánchez de que não conte com ela para ter “o poder a todo o custo”. Dentro do partido, Díaz é encarada como uma alternativa viável ao atual líder, que já anunciou uma recandidatura ao cargo. As eleições internas ocorrerão durante o congresso a realizar algures na primavera.
E o Ciudadanos?
O resultado eleitoral do Ciudadanos ficou muito aquém do esperado (os militantes esforçaram-se bem por disfarçar a desilusão), mas o partido laranja ainda quer ter uma palavra decisiva nesta história. Para o líder, Albert Rivera, negociar com o Podemos é impensável, mas até admite abster-se caso o PSOE e Pablo Iglesias cheguem a um acordo que não envolva o referendo na Catalunha. Quanto à participação ativa do Ciudadanos num governo, Rivera mantém o que já tinha dito antes das eleições: não contem com ele.
O que dizem os jornais?
Em editorial, o jornal El Mundo defendeu na quinta-feira que um bloco central era “a melhor opção que existe dada a fragmentação do mapa eleitoral”. Já o El País lembrava, no mesmo dia, que “a cascata de casos judiciais por alegada corrupção” que têm assolado o PP nos últimos dias comprometem a capacidade deste partido de alcançar um pacto de governo durável. “Qualquer acordo de governabilidade que se tente tem de começar por um projeto firme contra a corrupção”, defende o jornal, que antevê uma dificuldade natural a esta gran coalición: o PSOE e o Ciudadanos “dificilmente poderão explicar aos eleitores um pacto com o PP enquanto se multiplicam as provas de uma colossal perda de recursos públicos em benefício do enriquecimento ilícito de uns quantos”. O El País escreve mesmo que enquanto Rajoy estiver por perto, a sombra da corrupção continuará a pairar sobre o PP.
As palavras são duras, mas é altamente improvável que Rajoy se afaste de livre vontade. Apesar de ter tido um dos piores resultados de sempre, o PP ganhou as eleições. E, já que ninguém parece entender-se verdadeiramente, a hipótese de chamar os espanhóis de novo às urnas (algures em abril) torna-se cada vez mais provável.
O que diz a União Europeia?
Depois de mais de um mês de quase total silêncio, na segunda-feira ouviu-se pela primeira vez uma voz europeia. Num relatório da Comissão que deverá ser publicado nas próximas semanas — mas ao qual o El País teve acesso privilegiado –, defende-se que Espanha está sujeita a muitas “vulnerabilidades” económicas e que há “riscos” caso não haja “estabilidade política” no país.
A Comissão Europeia vai ao ponto de escrever que as dificuldades em formar governo “podem provocar uma perda de confiança” dos mercados no país e podem, além disso, “desacelerar a agenda de reformas” levadas a cabo pelo governo de Rajoy.
Até quando tem de haver novidades?
Até 13 de março, quando se cumprirem exatamente dois meses desde a primeira reunião do Congresso dos Deputados. Nessa data é obrigatório que já exista uma solução governativa, caso contrário torna-se inevitável a realização de novas eleições.
O rei Felipe VI começou na quarta-feira passada a segunda ronda de contactos com as forças políticas representadas no parlamento. O objetivo é igual ao da primeira ronda (formar um governo, pois claro), mas os resultados são tão imprevisíveis que nenhum analista se arrisca a dizer como esta história vai terminar. A ver.