Isabel dos Santos é o segundo maior acionista do BPI e está diretamente representada no conselho de administração deste banco através do seu braço direito em Portugal, Mário Leite Silva. Isabel dos Santos foi nomeada presidente não executiva da Sonangol, a petrolífera angolana que é a principal acionista do BCP com cerca de 18%, e que está amplamente representada na administração do maior banco privado. Será compatível?

Ainda que não exista nenhuma lei ou regra regulatória que o impeça, segundo a informação recolhida pelo Observador, a possibilidade de acumular a prazo estas duas situações está a levantar dúvidas ao nível de eventuais conflitos de interesses. Numa nota de análise, o banco de investimento Haitong considera que é “pouco provável” que os reguladores permitam à empresa angolana manter atual posição nos dois bancos.

Acreditamos que é pouco provável que os reguladores permitam que Isabel dos Santos esteja envolvida com duas empresas, a Sonangol e a Santoro, que têm participações qualificadas em dois bancos diferentes em Portugal”. Mas a questão não é assim tão simples. Para já, não existe qualquer impedimento legal, quer a nível da legislação bancária, quer dos estatutos dos dois bancos, que proíba esta dupla posição.

A Sonangol detém 17,8% do BCP e a Santoro controla 18,57% do BPI. É certo que Isabel dos Santos não é acionista da petrolífera estatal angolana, mas, enquanto presidente, ainda que não executiva, a filha do presidente angolano é claramente classificada como uma “parte relacionada” do principal acionista do BCP. Tem capacidade para intervir, ou pelo menos para influenciar.

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BIC e BPI. Os precedentes

Por outro lado, Isabel dos Santos já está presente no capital de dois bancos que concorrem no mercado nacional — o BIC Portugal e o BPI — através da mesma sociedade, a Santoro, e está representada nas duas administrações, sem que o tema tenha aparentemente levantado qualquer problema junto dos reguladores.

Mas vários especialistas ouvidos pelo Observador alinham com as reservas levantadas pela Haitong e admitem que a intervenção no BCP e no BPI não deverá ser considerada compatível a prazo. Por um lado, invocam a dimensão, são os dois maiores bancos privados portugueses, assinalam que estão ambos cotados na bolsa de Lisboa e realçam as estratégias diretamente concorrentes, não só no mercado pela captação de clientes e recursos, mas também em termos estratégicos: os dois querem concorrer à compra do Novo Banco.

“Estamos perante um conflito de interesses flagrante“, diz ao Observador um jurista especializado na área financeira. Porém, em termos formais, segundo as novas regras caberá, em primeiro lugar, aos bancos respetivos pronunciarem-se sobre a adequação das pessoas que compõem os seus órgãos sociais. Depois, cabe ao supervisor — o Mecanismo Único de Supervisão europeu, nestes casos — dar a sua apreciação às propostas. Resta saber que apreciação será feita, então, pelo BCP — fonte oficial do banco não quis fazer comentários.

De qualquer forma, haja ou não uma reprovação formal das novas circunstâncias, está criada uma situação constrangedora nos dois bancos. Isabel dos Santos passa a ser dona de uma empresa que detém 18% do BPI (segunda maior acionista) e presidente do conselho de administração da Sonangol, a maior acionista de referência do BCP. A agravar o “conflito de interesses flagrante” está o facto de, tanto o BCP como o BPI, estarem envolvidos no processo de compra do Novo Banco. Além disso, foi a própria Isabel dos Santos que, há cerca de um ano, propôs que os dois bancos — precisamente estes dois — se fundissem.

Mesmo que Isabel dos Santos, presidente não executiva da Sonangol, não se sente no conselho de administração do BCP e delegue essa função noutro administrador, o conflito de interesses é “óbvio”, diz o jurista, ainda que isso não signifique, necessariamente, que é insustentável e que não possa perdurar. “Isabel dos Santos consegue, assim, ter um pé num banco e outro pé noutro — estará a posicionar-se nos dois lados do tabuleiro”, além de estar também ligada ao BIC.

Supervisor pode intervir ao nível dos órgãos da administração

Uma eventual intervenção do regulador não se colocaria ao nível do capital ou do investimento — as regras europeias não impedem que um banco seja acionista de uma instituição concorrente — embora o supervisor não goste — mas, sim, ao nível da composição dos órgãos sociais. É certo que muito dificilmente um banco, ainda que acionista, conseguiria indicar ou fazer-se representar na administração de uma instituição concorrente. É quase uma questão de bom senso. Mas o caso levantado pela nomeação de Isabel dos Santos para a Sonangol não é comparável.

Cabe ao regulador avaliar a adequação dos administradores quando são nomeados. Mas sempre que considere que houve uma mudança de circunstâncias, pode reavaliar a adequação dos titulares de órgãos sociais. E todas as fontes ouvidas pelo Observador concordam que a nomeação de Isabel dos Santos para a presidência da Sonangol é uma mudança de circunstâncias com impacto provável nos investimentos que a empresária tem no setor financeiro em Portugal.

No entanto, e para um juízo que o regulador venha a fazer de um potencial conflito de interesses há outros fatores que pesam. A começar pelo posicionamento de Isabel dos Santos em relação aos seus investimentos na banca portuguesa, que deverá mudar. Não só existe um conflito aberto com o maior acionista do BPI e a própria gestão, como há sinais de uma maior vigilância regulatória sobre as suas operação, como aconteceu com as dúvidas do Banco de Portugal sobre a idoneidade de alguns gestores do BIC.

As opiniões recolhidas pelo Observador assinalam que a nomeação para a Sonangol é um passo que, claramente, indicia mudanças. Quais? Ainda ninguém sabe. A empresária angolana pode sair do capital do BPI, como chegou a estar previsto no acordo com o CaixaBank, que voltou para trás. Há, aliás, uma oferta pública de aquisição no mercado.

Ao mesmo tempo, há também mudanças dentro da própria Sonangol, cuja reestruturação passa pelo destaque dos ativos considerados não estratégicos. A participação no BCP será transferida para uma subholding que passará a responder diretamente ao Estado angolano. A prazo, a Sonangol pode também sair do capital banco português.

Uma eventual reavaliação da adequação dos administradores para acautelar conflitos de interesses passaria, também, pela análise ao impacto na concorrência, mas também no mercado de capitais, uma vez que a manutenção de uma situação pouco clara poderia provocar prejuízos aos investidores das duas instituições que estão cotadas na bolsa. E há, até, quem admita que a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e a Autoridade da Concorrência possam ser chamadas a pronunciar-se sobre o tema.

Formalmente, caberá ao Banco Central Europeu (BCE) suscitar a reavaliação dos titulares dos órgãos sociais de bancos que estão sob a sua supervisão, como são os casos do BCP e do BPI, tal como lhe compete validar a entrada de investidores qualificados. No entanto, qualquer posição do BCE sobre o tema irá apoiar-se no trabalho, avaliação e recomendações que venham a ser desenvolvidas pelo Banco de Portugal que é a entidade que está no terreno e que conhece melhor a situação. Questionada pelo Observador, fonte oficial do banco central remeteu para o BCE, que não respondeu em tempo útil às perguntas do Observador.

Questão dos conflitos de interesses também é levantada em Angola

As ondas de choque da escolha de Isabel dos Santos para liderar a Sonangol não se limitam à banca, nem a Portugal. Segundo o “Público”, um grupo de juristas angolanos vai discutir a viabilidade de impugnar a sua nomeação.

O advogado David Mendes, da associação cívica Mãos Livres, afirmou, em declarações ao jornal, que “foi uma nomeação muito estranha, tendo em conta que Isabel é filha do Presidente e tem muitos interesses no mundo do petróleo e no mundo financeiro”. Considera, por isso, que esses interesses podem entrar em colisão com a Sonangol.

“Estando num órgão tão importante como o conselho de administração, faria negócio consigo mesma ou facilitaria negócios com o seu próprio grupo. Isso levanta suspeitas”, considera David Mendes.

Um mês negro para as ações do BCP

As ações do BCP tiveram um mês de maio negro, caindo mais de 20%. E a primeira semana de junho foi a pior em cinco anos, com o banco a perder mais um quarto do valor: 472 milhões de euros em capitalização de mercado que se esfumaram em cinco sessões bolsistas. O BCP passou a valer 1.471 milhões de euros, menos de metade do que valia no início do ano e menos do que o BPI. A CMVM voltou a proibir o short selling (vendas a descoberto) dos títulos do Millennium na sessão da próxima segunda-feira.

O banco explica a queda das ações com a retirada do BCP do índice MSCI Global, com a gestora de índices a decidir passar o banco para um índice secundário para empresas com menor capitalização. Essa decisão afasta investidores do BCP já que os índices são importantes para muitos investidores, que os usam como referência para as aplicações.

O BCP esteve, também, no centro de especulações por parte de analistas de que o banco liderado por Nuno Amado seria um dos mais vulneráveis a um aumento de capital semelhante ao que foi anunciado pelo espanhol Banco Popular.