A disponibilidade do financiamento por parte do Banco Central Europeu (BCE) “foi uma bênção e uma praga”, defende o Fundo Monetário Internacional (FMI) num relatório de pós-avaliação ao programa de assistência a Portugal.
“É difícil ver como teria sido possível alcançar a estabilização sem a flexibilização dos constrangimentos financeiros. No entanto, a perceção de apoio incondicional — a promessa de Mário Draghi, feita em 2014, de fazer tudo o que tiver de fazer para segurar a zona euro e recuperar o crescimento — , pode ter criado inadvertidamente um fator de risco moral: os mercados ficaram disponíveis para financiar políticas orçamentais mais relaxadas e os bancos puderam adiar a reestruturação dos créditos de má qualidade”.
A política expansiva do BCE de compra de títulos de dívida em mercado com o objetivo de relançar a economia da zona euro facilitou o regresso de Portugal aos mercados onde se consegue financiar a taxas comportáveis, mas permitiu também ao país financiar uma política orçamental menos exigente, sendo um incentivo contrário ao esforço de consolidação orçamental.
A necessidade de alinhamento entre a estratégia da política monetária e os objetivos de um programa de assistência económico e financeiro é uma das conclusões do Fundo Monetário Internacional numa avaliação que volta a revisitar os sucessos e insucessos do ajustamento de Portugal, desenvolvido ente 2011 e 2014 com a vigilância da troika: o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu.
Nos casos em que esse alinhamento não é possível, e a política monetária do BCE é desenhada para alcançar as metas da união económica e não em função das necessidades específicas de um país, levanta-se a questão de saber se um programa do FMI pode adotar as medidas e incentivos necessários para assegurar o cumprimento dos objetivos globais do programa, apesar da falta de controlo do ambiente monetário.
Nesta pós-avaliação, há ainda lugar para alguma autocrítica — as falhas de comunicação da troika na explicação do programa e as suas correções que poderiam ter criado uma perceção social mais abrangente dos objetivos e dos custos de falhar — ainda que o FMI assinale o reduzido apetite dos interlocutores nacionais por maior presença da troika nos media — e para algumas críticas recorrentes.
Não se foi suficientemente longe nas reformas estruturais, em particular no mercado de trabalho e de produto, com o Fundo a insistir nas rendas excessivas no setor elétrico, cuja negociação acabou por ficar refém dos direitos adquiridos de investidores.
O FMI aponta anda para os recuos que o programa sofreu por causa de decisões do Tribunal Constitucional que chumbaram 13 medidas de consolidação orçamental, a maioria do lado da despesa pública com impacto em salários e pensões. Para além da “incerteza”, medidas de substituição introduzidas pelo anterior governo eram de pior qualidade, menos amigas do crescimento (aumento de impostos) e contrárias a ganhos de competitividade.
A interpretação de que a Constituição afasta qualquer mudança com base nos fundamentos de justiça levantou dúvidas sobre a legitimidade do programa e também teve como resultado que o futuro ficou muito mais incerto, uma vez que medidas adotadas no passado podiam ser revertidas.
Apesar das ressalvas, a equipa do FMI que fez um exame ao programa concluiu que as grandes decisões do programa foram “justificadas” e qualifica o programa de sucesso. E tira algumas lições.
- A reestruturação da dívida soberana nunca foi foi uma opção realista — no início devido ao receio de contágio e, mais tarde, porque o regresso aos mercados trouxe ganhos claros para Portugal.
- O grande ajustamento orçamental no arranque do programa era a única estratégia para restaurar a confiança do mercado na sustentabilidade da dívida portuguesa. É certo que as metas orçamentais foram demasiado ambiciosas e que a recessão foi pior do que o previsto. O FMI assinala que as metas foram flexibilizadas por causa de um crescimento “desanimador”, mas sustenta que a “inversão das medidas reduziu a qualidade do ajustamento e minou a estratégia de competitividade”.
- Foi possível manter os bancos abertos e travar tensões adicionais no setor financeiro — uma vez que Portugal não estava a viver uma crise bancária — o que foi justificável face à informação então conhecida. No entanto, o Fundo deixa o alerta.
- A estratégia de apoiar o crescimento, travando uma desalavancagem mais abrupta “deixou Portugal num impasse, com fraquezas no setor bancário e um setor privado em estagnação.
- As reformas do mercado de trabalho foram fundamentais para os objetivos de Portugal em matéria de competitividade.
Deveria a dívida pública ter sido reestruturada?
Não. O Fundo Monetário Internacional (FMI) recorda que os parceiros da troika, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, e as autoridades portuguesas, eram contra a reestruturação da dívida.
O relatório de pós-avaliação ao programa concorda com esta perspetiva, considerando que uma reestruturação no arranque do ajustamento teria provocado mais danos daqueles que seriam justificados. Ainda que sublinhe que nunca é uma escolha fácil.
“Tendo em conta os elevados montantes de dívida detidos por investidores domésticos e bancos da zona euro, uma tal operação seria provavelmente disruptiva, tanto para a estabilidade doméstica como para a estabilidade regional”. Além disso, quando uma oportunidade surgiu mais tarde, os benefícios não pareciam suplantar os custos, num contexto em que o regresso aos mercados estava à vista”.
O FMI assinala os riscos de contágio a outros países do euro, um fator que foi muito valorização pelos parceiros da troika.
Um crescimento de longo prazo mais baixo do que o projetado poderia reforçar as expectativas de ganhos nesta operação, mas estes ganhos poderiam facilmente ser afogados pelo prémio de alto risco que ficariam a associados a uma perspetiva de crescimento mais fraca.
O FMI aponta ainda o caminho do prolongamento do prazo dos empréstimos, que foi negociado com o EFSM (Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira) em 2013. Se é certo que o nível elevado da dívida pública permanece intacto, esta opção pode alimentar novos financiamentos, ao invés de incendiar o medo nos mercados de um novo resgate. Em particular nos países que estão numa união monetária, onde os contágios são uma preocupação real, uma partilha de custos desta natureza terá provavelmente menos custos do que uma reestruturação unilateral da dívida.
Deveria a estratégia para a banca ter sido mais proativa?
A resposta não é tão evidente. A constatação de que os problemas do sistema financeiro permanecem é uma evidência, visível na degradação da qualidade dos ativos dos bancos, que ainda agora têm prejuízos por causa de imparidades de crédito, e nos casos de resolução do Banco Espírito Santo e do Banif e de necessidades de mais capital, como a Caixa Geral de Depósitos.
O FMI lembra que o programa de avaliação da solidez dos banco, bem como os primeiros testes de stress, foi concebido a partir do modelo de risco do Banco de Portugal. Só mais tarde foi implementada uma avaliação independente. Em 2013, foram detetadas “algumas inconsistências” no quadro usado pelo Banco de Portugal nos testes de stress que poderão ter resultado em “projeções demasiado otimistas”. Esta situação foi entretanto corrigida.
O relatório admite que teria sido possível realizar uma identificação mais acertada e atempada das vulnerabilidades da banca, assinalando que havia margem financeira para reforçar a almofada de segurança dos bancos, dado que apenas metade da linha de 12 mil milhões para a banca foi usada.
No entanto, considera que a recapitalização mais generosa e antecipada dos bancos, poderia não ter sido suficiente para promover uma reestruturação da dívida bancária das empresas, em grande medida porque o mecanismo das ajudas de Estado da Comissão Europeia foi um travão ao reconhecimento de perdas por parte dos bancos, que resultaria dessa reestruturação.
Na mesma linha, o FMI diz que seria improvável que um exame mais exigente aos ativos dos bancos permitisse a revelação dos problemas do Banco Espírito Santo (BES), recordando a estrutura organizativa do banco, as operações em Angola fora do radar do Banco de Portugal, e o comportamento fraudulento na gestão do banco.
Ainda assim, o FMI sublinha que os “incidentes repetidos de fraude” no sistema bancário — BES e BPN (Banco Português de Negócios) — levantam dúvidas sobre se o Banco de Portugal tem uma abordagem suficientemente robusta para monitorizar a gestão dos bancos. Logo, um “escrutínio mais rigoroso das práticas de supervisão, seguido de medidas adicionais de reforço da supervisão, teriam beneficiado o programa”. Ainda que os principais problemas na banca tenham surgido já depois de o programa estar concluído.