A menos de 24 horas da votação decisiva da lei de bases da saúde não há sinal de acordo entre a esquerda nas parcerias público privadas. Nas últimas horas o Governo, o PS e os parceiros à esquerda trocaram versões para a base número 18, precisamente a que tem um ponto dedicado às PPP, mas o PS não abre mão de uma redação que deixe aberta a porta à concessão a privados, dentro de uma série de restrições. No Bloco de Esquerda e no PCP a intenção é mesmo fechar essa porta de vez. A votação deste ponto específico acontece esta terça-feira à tarde, no grupo de trabalho sobre a lei de bases, logo depois de terminado o debate quinzenal com o primeiro-ministro.

Não houve avanços desde o final da semana passada, embora os contactos, telefonemas e trocas de documentos se tenham mantido durante os últimos dias e tenha também sido possível perceber que se mantém inalterada a resistência de ambas as partes em cederem um milímetro naquilo que já consentiram até agora.

A verdade é que, apesar de terem sido apresentadas propostas de alteração de PCP, Bloco e PS na última semana, nenhum dos três parceiros parlamentares cedeu na posição de princípio. Os socialistas não querem impedir a possibilidade de existência das PPP, os comunistas e os bloquistas querem fechar essa hipótese.

Há uma semana, o Bloco de Esquerda apareceu com uma alternativa para tentar um acordo com o PS, propondo que as PPP fossem omitidas na lei de bases e que se revogasse de imediato o regime jurídico de 2002 que enquadra as que já existem. Ficaria uma espécie de vazio legal, com a promessa de rever o regime jurídico logo no início da próxima legislatura.

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O PCP surgiu com a mesma proposta relativa ao regime jurídico do Governo de Durão Barroso, mas na lei de bases queria que a gestão dos hospitais públicos por privados fosse proibida. O PS surgiu, por fim, a querer manter as PPP, mas apenas em “situações excecionais” — não acrescentava muito à proposta anterior, onde já só admitia as PPP de forma “supletiva e temporária assegurada por contrato de direito público devidamente fundamentado”.

Os socialistas consideram que esta é uma restrição suficiente para não vulgarizar as PPP, mas a esquerda não concorda e quer que os contratos atuais terminem sem renovação e que não sejam feitos novos contratos. Na semana passada, à TSF, o líder parlamentar do PS Carlos César disse que “ninguém está excluído da negociação, especificamente em relação a este caso da lei de bases da Saúde. Há efetivamente uma divergência entre o Partido Socialista e os partidos à sua esquerda”. A declaração abria a porta ao PSD, mas ao que o Observador apurou, os socialistas têm mantido contactos para um acordo apenas com a esquerda. “Para já, só estamos a falar com os parceiros”, disse ao Observador fonte socialista no final da semana passada. E esta situação manteve-se até esta segunda-feira.

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Nos contactos com os parceiros, os socialistas mantêm que não prescindem de uma redação da lei de bases que permita que a legislação posterior possibilite a concessão a privados em caso de necessidade. O PS tenta dar sinais de limitações das PPP à esquerda, mas sem as inviabilizar até porque a proibição das PPP é mal vista pelo Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa foi muito claro quanto a isso e já fez saber que considera que “é uma lei irrealista” aquela que feche totalmente a porta da gestão de hospitais públicos a privados.

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À esquerda olha-se com desconfiança para a postura do PS. Tanto no BE como no PCP existe a noção clara de que um acordo à esquerda é cada vez mais difícil. E o cronómetro não ajuda. Os dois partidos dizem que é impossível esticar mais a corda para o seu lado. Entendem que cederam até ao limite do razoável e querem que sejam os socialistas a dar o próximo sinal de abertura. E não chegam “questões de semântica”, avisam. É preciso mais para que o acordo seja fechado à esquerda até ao fim do plenário de amanhã no Parlamento.

No Bloco de Esquerda, os responsáveis pelas negociações vão repetindo, sempre que são questionados, que não vão desistir de tentar encontrar um entendimento com o PS até à hora das votações. Mesmo quando as posições de ambos os partidos parecem inconciliáveis. Para os bloquistas este nem é bem o caso, já que asseguram que a última proposta que apresentaram aos socialistas — que sugere que se retire da base 18 as referências às PPP com a garantia de que o decreto-lei que as regula é revogado  — responde aos anseios do PS. Isto porque, segundo a proposta do BE, a lei de bases deixaria de proibir, por omissão, a existência de PPP no setor, cedendo assim a uma exigência do Governo. Mais longe do que isto o Bloco de Esquerda não está disposto a ir. É a linha vermelha. E, até ao momento, nenhuma das várias versões da base 18 que têm estado a circular no seio da “geringonça” parece respeitar esta condição.

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Uma coisa é certa: não será o BE a ceder mais. Com esta proposta os bloquistas conseguem passar a ideia de que tentaram aproximar-se do PS sem trair o seu eleitorado. Ou seja, dão um aparente sinal de aproximação, apresentando uma nova proposta, menos radical que a original, para relançar o debate na partida para a reta final dos trabalhos, ao mesmo tempo que conseguem manter-se fiéis à sua ideologia, mostrando-se contra quaisquer PPP na saúde. Ir mais longe compromete este ponto de equilíbrio. Para o Bloco de Esquerda a bola está do lado do PS.

Uma postura que já mereceu críticas do… PCP. Há cerca de uma semana, em declarações ao Observador, João Oliveira avisava que a proposta bloquista deixava tudo na mesma. “Deixar que a nova lei nada diga sobre as PPP deixa o problema mais ou menos no mesmo ponto em que está agora”, disse, recordando que a atual Lei de bases da Saúde nada diz sobre PPP e isso nunca impediu per se que elas existissem. Um risco que se manteria enquanto a lei se mantivesse em vigor.

A falta de sintonia entre comunistas e bloquistas não é uma novidade nesta legislatura. O PCP é mais pragmático: quer o fim das PPP na Saúde. Das atuais e das que pudessem ser concebidas no futuro. Além de defender que a lei-quadro para o setor da Saúde não pode permitir mais PPP, o partido defende que o decreto-lei que regula as existentes tem de ser revogado. Uma espécie de all-in no fim das PPP na Saúde. Só assim é que os comunistas aceitam aprovar uma lei de bases com os socialistas.

Nenhuma das versões da base 18 que foram chegando à Soeiro Pereira Gomes nos últimos dias da parte do Governo foi suficiente para que os comunistas mudassem a sua posição. “Mas até ao lavar dos cestos é vindima“, ouve-se nas hostes comunistas, que ainda acreditam que, com a pressão, o Governo e o PS possam acabar por ceder. Embora o tempo e postura dos socialistas mostrem que a conclusão mais provável é precisamente a contrária.

Tanto Bloco de Esquerda como PCP já tiveram mais esperança num acordo com o PS, que veem cada vez mais confortável com a possibilidade de acabar a legislatura sem uma lei de bases da Saúde aprovada. Por isso, desconfiam de todos os movimentos e querem que o acordo seja o mais claro possível, para não dar espaço a futuros contorcionismos. Um puzzle complexo que, nestas últimas horas, não parece ter tido os avanços de que precisava para acabar resolvido. Faltam apenas algumas horas até às votações decisivas do grupo de trabalho que discute e vota esta lei-quadro no Parlamento.

A votos, na tarde nesta terça-feira, estará a famosa base 18, relativa à gestão e funcionamento do SNS e os olhos estarão postos no ponto 3 desta base, relativo à existência de privados. A votação é indiciária, terá de ser confirmada pela comissão parlamentar de Saúde. E depois disso ainda vai ao plenário, para a votação final global. Não há garantias de que sobreviva a todo este processo.