Há 12 anos, em 2007, o AC Milan venceu o Liverpool na final da Liga dos Campeões com dois golos de Inzaghi e tornou-se campeão europeu. No ténis, Roger Federer venceu três Grand Slams e permaneceu no primeiro lugar do ranking ATP pelo quarto ano consecutivo. Na Fórmula 1, Kimi Raikkonen foi campeão do mundo com a Ferrari, Casey Stoner ganhou o Mundial de Moto GP com a Ducati e os San Antonio Spurs bateram os Cleveland Cavaliers na Finals para se sagrarem campeões da NBA. Ora, 12 anos depois, o AC Milan não está nas competições europeias, Federer é terceiro no ranking, Raikkonen está na Alfa Romeo a lutar pelos pontos, Casey Stoner está reformado desde 2012 e os Spurs não chegam às Finals desde 2014. Mas no râguebi, de 2007 para cá, o panorama superficial é semelhante.

No Mundial de râguebi de 2007, organizado em França, — aquele Mundial em que Portugal fez história ao tornar-se a primeira seleção amadora a completar um ensaio numa fase final — África do Sul e Inglaterra defrontaram-se na final. Os primeiros, não chegavam ao jogo decisivo desde 1995, o histórico ano em que foram anfitriões e cuja conquista do Campeonato do Mundo ficou intrinsecamente ligada a Nelson Mandela e à mudança profunda que o então presidente sul-africano estava a empreender na sociedade do país; os segundos, eram os campeões em título depois de em 2003 terem derrubado a Austrália, que jogava em casa, na final. Há 12 anos, a África do Sul saiu por cima — nove pontos por cima, já que ganhou por 15-6 — e garantiu aquele que continua a ser o segundo de dois Mundiais do próprio palmarés. Os sul-africanos, na altura orientados por Jake White, voltaram ao topo do râguebi internacional. E muito têm que agradecer a um australiano que agora está do outro lado da barricada.

Este sábado, tal como há 12 anos mas no Japão, África do Sul e Inglaterra encontram-se na final do Mundial de râguebi. Os sul-africanos deixaram para trás o País de Gales, depois de terem afastado os anfitriões, e os ingleses eliminaram os campeões em título Nova Zelândia após derrotarem com estrondo a Austrália. A final deste sábado, mais do que um reencontro entre a África do Sul e a Inglaterra, simboliza um reencontro entre um treinador australiano que orienta ingleses e já foi preponderante para a conquista dos sul-africanos. É confuso — mas tudo se personifica na pessoa de Eddie Jones, o atual selecionador de Inglaterra. Em 2007, a carreira do treinador australiano parecia ter batido no fundo: depois de perder em casa a final do Mundial de 2003 ao comando da Austrália, foi despedido dois anos depois e na antecâmara do Mundial de há 12 anos tinha acabado de ficar no último lugar da liga australiana com os Queensland Rangers. Quando deixou o clube, não só estava desempregado como tinha perdido grande parte do amor pelo desporto e por aquilo que fazia. Até que surgiu uma chamada de Jake White.

As camisolas negras foram atropeladas em 96 segundos: Inglaterra afasta Nova Zelândia da final do Mundial

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Jake White, então selecionador da África do Sul, recordava-se de um encontro específico com Eddie Jones, dias antes de um jogo entre os sul-africanos e a Austrália. Sem conceder muitos segredos, Jones avisou White, desde logo, que o relvado rápido de Brisbane favorecia a própria equipa — o selecionador da África do Sul relativizou, disse que “um campo é apenas um campo” e despediu-se do colega de profissão. Resultado final? Um claro 49-0 onde a velocidade dos jogadores australianos não deu qualquer hipótese aos adversários. Na antecâmara do Mundial de 2007, White recordou-se da perspetiva única com que Eddie Jones olhava para o jogo e convidou-o para passar uma semana a assistir aos treinos da seleção sul-africana. “Nessa semana, percebi o valor enorme que o Eddie acrescentava. Ele pegou em ideias que já existiam e deu-lhes uma roupagem nova”, revelou Jake White num testemunho dado ao livro Eddie Jones: Rugby Maverick, que conta a história do treinador. No final da semana, convidou-o para se juntar em definitivo à equipa enquanto consultor técnico. “Achas que consegues transformar prata em ouro?”, respondeu Eddie Jones. No fundo, o australiano só queria saber se existia a possibilidade real e palpável de a África do Sul se tornar campeã do mundo.

Depois de ultrapassadas algumas intransigências face à nacionalidade do treinador — a Federação australiana chegou a dizer que “se vendeu”, a sul-africana também não olhava com bons olhos para a integração de um estrangeiro no staff –, Eddie Jones começou a trabalhar em conjunto com a equipa da África do Sul na preparação do Mundial. Mas não sem antes garantir, para descansar os burocratas sul-africanos, que não iria vestir o blazer oficial da equipa. “Apanhámos o Eddie divertido. Ele não tinha de falar em conferências de imprensa nem tinha de comunicar com administradores. Não apareceu para tomar controlo. Só nos dava pequenas doses de sabedoria, um insight sobre como quem estava de fora nos via. Ele tem um cérebro de râguebi inacreditável. As nuances dele são algumas das melhores que alguma vez vi”, explicou ao Independent Bryan Habana, que fazia parte do grupo orientado por Jake White.

Em 2007, a África do Sul foi campeã do mundo ao bater Inglaterra na final: um jogo que será reeditado este sábado, no Japão

No Mundial, a história já é conhecida. A África do Sul chegou à final, venceu Inglaterra e transformou “prata em ouro”, tal como Eddie Jones tinha pedido. Na semana do jogo decisivo, o selecionador pediu ao consultor técnico que fizesse uma das palestras motivacionais agendadas. O conselho foi simples: “Parem de se preocupar. A preparação está feita, toda a gente conhece o seu papel e ninguém está lesionado. Parem de se preocupar”. No fim do jogo, na hora de receber as medalhas de campeão, Jake White afastou-se e empurrou Eddie Jones para que este a recebesse primeiro, numa assunção clara do contributo inegável do australiano para a conquista. Semanas depois, já após deixar a seleção sul-africana, Jones chegou ao gabinete que tinha nos Saracens, o clube da Austrália pelo qual tinha assinado entretanto, e descobriu uma encomenda em cima da secretária. Lá dentro, estava um blazer oficial da África do Sul. “Eu valorizo mesmo o contributo do Eddie, por isso, dei-lhe o meu blazer. Espero que esteja pendurado algures em casa dele. É um bom homem”, revelou ao Independent Bryan Habana, que foi o melhor marcador de ensaios do Mundial 2007.

Depois de uma passagem pela seleção do Japão entre 2012 e 2015, Eddie Jones aceitou o desafio de orientar Inglaterra há quatro anos e está agora na final do Mundial 2019, onde vai encontrar a equipa que há 12 anos ajudou a ser campeã do mundo. Do outro lado, enquanto treinador da África do Sul, está Rassie Erasmus: o homem que, em 2007, deixou o cargo de consultor técnico da seleção sul-africana e abriu uma vaga para a entrada de Eddie Jones. Numa final obviamente marcada pelo destino e pelos cruzamentos que a vida, mesmo no desporto, acaba por dar, África do Sul e Inglaterra vão decidir quem regressa ao topo do râguebi internacional.