“Predador”. No arranque do julgamento de Harvey Weinstein, em janeiro, a procuradora do Ministério Público Joan Illuzzi não hesitou em desferir o primeiro golpe da acusação, cunhando o produtor norte-americano caído em desgraça com um nome que antes lhe fora atribuído pelo amplamente noticiado movimento #MeToo. Do outro lado da barricada, a defesa prontificou-se a assegurar que ia optar por um “interrogatório agressivo” às mulheres que acusavam — e acusam — Weinstein, uma promessa que foi cumprida ao longo de cerca de um mês de julgamento e cuja sentença começa esta terça-feira a ser discutida em Nova Iorque por um júri composto por sete homens e cinco mulheres. Chegar a um veredicto poderá não ser fácil, tal como lembra o The Guardian, que recorda que no caso de Bill Cosby foram precisos “seis dias cansativos” para chegar a uma conclusão.
Ao longo deste período foram vários os pontos de interesse noticioso: da polémica escolha de Donna Rotunno para advogada de defesa e da difícil seleção do júri, tendo em conta o mediatismo extremo do caso, aos testemunhos das duas mulheres que formalmente acusam o produtor norte-americano e que, de certa forma, representam as mais de 100 mulheres que tornaram públicas as queixas de conduta sexual inapropriada. Testemunhos esses que não deixam de apresentar alguns pontos fracos, sobretudo depois de comprovado que, em ambos os casos, as alegadas vítimas mantiveram relações cordiais – e mesmo relações sexuais – com Weinstein posteriores aos atos relatados em tribunal. O júri ouviu seis mulheres que acusam Weinstein e ainda outras 22 testemunhas chamadas pela acusação durante o julgamento de poucas semanas.
Aos 67 anos — 68 a partir do dia 19 de março —, Weinstein está acusado de cinco crimes ocorridos entre 2006 e 2013, entre os quais agressão sexual e violação em primeiro e terceiro graus. Detido desde maio de 2018, o produtor continua a insistir na inocência, afirmando que todos os atos sexuais foram consentidos. Caso seja condenado — uma decisão que agora começa a ser deliberada —, arrisca pena de prisão perpétua. Não que isso pareça intimidá-lo: numa troca recente de emails com a CNN, mostrou-se confiante no seu regresso à indústria do cinema uma vez resolvido o caso, admitindo até que tal “vai implicar algum trabalho”.
“Ele pôs-se em cima de mim e violou-me”
A defesa bem sugeriu que a experiência de atriz de Anabella Sciorra, mais conhecida pela série “Os Sopranos”, fazia dela uma testemunha pouco fiável, mas tal não impediu que o seu depoimento marcasse o segundo dia de julgamento. Detalhes “excruciantes” da noite em que alegadamente foi violada, algures entre 1993 e 1994, foram revelados num tribunal em silêncio e interrompidos por lágrimas da própria, tal como descreveu o The New York Times a 23 de janeiro. No papel de testemunha durante mais de duas horas — ainda que o seu caso seja tão antigo que não possa ser julgado em tribunal —, Sciorra parecia “exausta”, com a voz embargada e “incapaz de controlar os soluços”. Na sua versão dos factos, Harvey Weinstein atacou-a depois de a levar a casa, no seguimento de um jantar na baixa de Manhattan na companhia de outras pessoas.
O ataque terá acontecido no apartamento da atriz, em Gramercy Park, depois de esta se despedir do produtor norte-americano. Segundo o relato dado em tribunal — contestado por Weinstein, que continuou sempre a invocar a sua inocência —, a atriz chegou a casa pelas 22h, subiu as escadas até ao piso de cima, onde vestiu a camisa de noite e lavou os dentes, preparando-se para ir dormir. Momentos depois ouviu alguém a bater à porta. Pensou tratar-se de um vizinho ou do porteiro. Abriu-a e, para sua surpresa, voltou a deparar-se com Weinstein que, inesperadamente, abriu caminho à sua passagem. De seguida, Weinstein terá começado a desabotoar a camisa e foi quando Sciorra se apercebeu que ele pensou que iam ter sexo. Sob juramento, a atriz descreveu como pensou em fugir para a casa de banho e como o produtor a agarrou pela camisa de noite e a empurrou em direção ao quarto, onde a violou na cama, prendendo-lhe os braços acima da cabeça.
Sciorra disse “não” mais do que uma vez, até chegar a um ponto em que pouco havia a fazer. “O meu corpo desligou-se. Eu estava tão enojada que o meu corpo começou a tremer de uma forma que não era habitual. Parecia um ataque ou algo assim.” Depois de Harvey Weinstein ter saído, a atriz perdeu a consciência. Até hoje não sabe se desmaiou, se perdeu os sentidos ou se adormeceu. Quando ganhou consciência já estava no chão, com a camisa de noite levantada. Mais tarde, atriz e produtor encontrar-se-iam num restaurante, com Sciorra a aproveitar a ocasião para confrontá-lo. “Isto fica entre nós”, terá dito Weinstein com um ar ameaçador.
Apesar das queixas formais contra o produtor terem por base as alegações de apenas duas mulheres, o juiz permitiu que outras mulheres pudessem testemunhar de maneira a estabelecer um padrão de comportamento, até porque uma grande parte dos casos relatados em tribunal são muito antigos para serem julgados.
Duas acusações, dois testemunhos gráficos
As duas mulheres que essencialmente constituem o caso contra Harvey Weinstein acusam o produtor de conduta sexual inapropriada, incluindo violação, em episódios que datam de 2006 e 2013. Miriam Haley, ex-assistente de produção, acusa-o de forçar a prática de sexo oral, em 2006, no seu apartamento em TriBeCa (bairro no centro de Manhattan). Weinstein era, na altura, seu patrão. A cabeleireira e aspirante a atriz Jessica Mann, cuja identidade só foi divulgada no primeiro dia de audições, acusa-o de violação, em 2013, num quarto de hotel em Manhattan e ainda, em 2014, num hotel em Beverly Hills.
A história de Haley (recentemente mudou o nome para Mimi Haleyi) alegadamente aconteceu a 10 de julho de 2006, quando a então assistente de produção estava no apartamento de Harvey a convite deste. O relato dá conta que Weinstein a empurrou para um quarto e, de seguida, para uma cama. Aí, ignorando os seus protestos, fez-lhe sexo oral “forçado”. Haley estava com o período, pelo que o produtor terá removido à força o tampão. “Eu estava a dizer-lhe ‘Não, não, não, não faças isso'”, contou Haley em tribunal. “Era como se ele não acreditasse em mim.” A produtora, hoje com 42 anos, recorda-se ainda de ter pensado: “Estou a ser violada”. “Eu não conseguia afastar-me dele de todo, quanto mais sair do apartamento. Finalmente, ao fim de algum tempo, saí e decidi que ia aguentar isto. Naquela altura isso era a coisa mais segura a fazer.”
Passou um mês até que Haley voltou a encontrar-se com o homem que agora acusa em tribunal, ela que ter-se-á dirigido ao hotel onde Weinstein estava hospedado para o confrontar e onde acabou por ter sexo com ele sem resistir. O produtor terá puxado Haley em direção à cama, apesar dos soluços desta. “Senti-me entorpecida. Senti-me uma idiota”, disse citada pelo The New York Times. Weinstein não foi acusado de violar Haley, mas enfrenta acusações de ato sexual criminoso e agressão sexual predatória. Em relação ao encontro no hotel, o produtor não foi formalmente acusado. Em interrogatório, Haley disse que não sabia que aquele era um ataque porque não “resistiu fisicamente”. “A verdade é que teve uma relação consensual com Weinstein”, argumentou o também advogado de defesa Damon Cheronis após o testemunho. Haley respondeu: “Não, uma relação sexual consensual não”.
Para Jessica Mann, que conheceu o produtor numa festa em Los Angeles, os pedidos de massagem vieram primeiro e antecederam a prática forçada de sexo oral (à semelhança do que aconteceu com Haley) numa reunião sobre um filme. Sob juramento, Mann contou que fingiu o orgasmo para sair daquela situação. Semanas mais tarde, Mann terá sido violada por Weinstein num hotel depois de este injetar o seu pénis com um medicamento. Contou ainda como o produtor a terá impedido de sair do quarto e como a obrigou a despir-se. “Por dentro eu estava muito zangada e muito assustada. Desisti nesse momento.” Segundo a testemunha, o produtor tinha-a manipulado desde o início, forçando-a a ter uma relação sexual.
Este não é, no entanto, o único relato explícito de Mann. Passados oito meses, Weinstein terá atacado a cabeleireira quando esta lhe tentou contar que não podia ter mais relações com ele porque tinha um namorado. O produtor terá ficado furioso por descobrir que o namorado era um ator e arrastou-a para um quarto — a notícia foi dada no hotel Peninsula Beverly Hills onde ela trabalhava. Empurrando-a para a cama, alegadamente violou-a uma vez mais: ao sexo oral forçado seguiu-se a penetração. No final, Weinstein terá dito: “É que eu te acho-te tão atraente. Não consegui resistir. Somos amigos, certo?”.
Quando chegou a vez de Jessica Mann ser interrogada pela defesa, houve uma clara tentativa de a retratar como uma pessoa oportunista que teria tido uma longa e romântica relação com o magnata de Hollywood, tal como escreve o jornal já citado. Mann reconheceu que contactou Harvey Weinstein várias vezes depois do encontro de 2013 — aquele em que alega ter sido violada — e que o último encontro sexual data de 2016, altura em que a mãe deste morreu. Apesar de reconhecer a existência de “uma relação complexa”, a aspirante a atriz mediu as palavras quando reiterou: “Quero que o júri saiba que ele é o meu violador”. Do outro lado da barricada, a acusação mostrou uma Jessica Mann como jovem e ingénua, oriunda de uma quinta do estado de Washington; uma mulher explorada por um produtor abusador.
Um dos problemas associados a estes testemunhos, segundo peritos consultados pela Page Six, é o facto de as duas principais vítimas terem admitido que tiveram sexo com Weinstein após os alegados ataques, um facto que pode ser danoso para a acusação — a isso acrescenta-se o facto de ambas terem recebido presentes de Weinstein e de terem, inclusive, enviado “emails afetuosos” apesar da conduta inapropriada de que o produtor é agora acusado. Os procuradores, no entanto, optaram por descrever como Weinstein usou o seu poder e influência para se impor fisicamente e forçar mulheres a ter encontros sexuais.
O The New York Times recorda que, em termos legais, violações podem ocorrer em relações consensuais e dá como exemplo casamentos abusivos. Algumas vítimas escolhem, neste contexto, ou mediante determinadas circunstâncias, manter relações amigáveis com os atacantes.
Independentemente do que o júri deliberar — um processo que arranca esta terça-feira —, Harvey Weinstein terá de enfrentar uma vez mais a barra dos tribunais, isto é, ir novamente a julgamento, desta vez em Los Angeles, onde é acusado de ter violado uma mulher e de ter agredido sexualmente uma outra. Ambos os casos datam de fevereiro de 2013 e terão acontecido em dois dias consecutivos.