É o primeiro passo da estratégia “muito agressiva” de combate ao surto na região de Lisboa, apresentada há menos de um mês pela diretora-geral de Saúde, e está a falhar — o que pode, por si só, ajudar a explicar o crescimento exponencial do número de infetados na zona e a dificuldade das autoridades em conter a pandemia.

Várias centenas de infetados com o novo coronavírus têm esperado durante dias pelo contacto das autoridades de saúde pública que devia ser feito, no máximo, até 24 horas depois da confirmação da infeção, denunciam ao Observador vários especialistas — e assumiu Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e coordenador da região de Lisboa e Vale do Tejo para a pandemia de Covid-19, que esta segunda-feira revelou, sem avançar números, a existência de cadeias de transmissão ativas que “ainda não foram controladas”.

Os atrasos nos inquéritos epidemiológicos, que, para além de visarem apurar cadeias de transmissão, servem sobretudo para identificar potenciais novos casos — mandam as regras que todas as pessoas com quem os doentes infetados tenham mantido contactos superiores a 15 minutos nos 14 dias antes da confirmação da infeção sejam também elas contactadas e mantidas sob vigilância das autoridades de saúde —, poderão ajudar a explicar os números do surto na região, em ascensão há mais de um mês, acreditam os especialistas.

Alguém que tem um diagnóstico positivo, apesar de tudo, deverá estar isolado e a cumprir a quarentena, mesmo que não tenha feito o inquérito epidemiológico. O problema são os contactos próximos, que podem estar assintomáticos e disseminar a doença. Por falta de recursos humanos, houve centenas de inquéritos epidemiológicos que foram adiados e não foram feitos de forma imediata. Sei que houve casos em que demoraram três ou quatro dias até terem sido feitos. Um infetado, neste tempo, pode infetar muita gente”, diz ao Observador Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública.

Outra fonte, que preferiu não ser identificada, garante que ouviu relatos ainda mais extremos, de pacientes que chegaram a esperar durante nove dias até serem contactados pela primeira vez pelos médicos de saúde pública. “Todos os casos têm de ser alvo de inquérito epidemiológico, para tentar apurar qual é a cadeia de transmissão, e para identificar contactos que, por sua vez, também são são contactados para iniciarem quarentena. Depois mantêm-se, todos eles, em vigilância e são contactados periodicamente para perceber se houve evolução do quadro clínico ou, no caso dos que estão em quarentena, se desenvolveram sintomatologia, e para saber se estão a cumprir aquilo que lhes foi pedido” contextualiza Ricardo Mexia. “Deve ser feito o mais depressa possível. Demorar dias ou semanas pode dar origem a que pessoas potencialmente infetadas continuem a fazer as suas vidas e a disseminar a doença, no até no período antes de a desenvolverem. Pode dar origem àquilo que se está a passar em Lisboa, por exemplo.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O problema, que foi referido pela primeira vez no final de maio, durante uma das habituais reuniões de peritos e políticos no Infarmed — na altura por Mário Durval, delegado de saúde pública da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS-LVT), que viu noutra sua declaração o soundbyte do dia: “Os profissionais de saúde pública fliparam” —, voltou a ser discutido na passada quarta-feira.

Antes disso, revelou fonte da autarquia lisboeta ao Observador, também já tinha sido debatido numa reunião com o primeiro-ministro, e dado azo até a um momento particularmente incómodo: quando os atrasos na realização dos inquéritos epidemiológicos foram relatados e assumidos perante António Costa, questionados sobre quem eram e em que freguesias estavam os infetados em questão, os delegados de saúde não terão sabido responder de forma imediata e com exatidão.

Medina aponta muitas falhas ao combate à pandemia. “Com maus chefes e pouco exército não conseguimos ganhar esta guerra”

Internos em voluntariado ou colaboradores de call-center?

Se, a 28 de maio, Mário Durval, que não se mostrou disponível para falar ao Observador, reconheceu que havia atrasos nos inquéritos epidemiológicos na região — situações ainda “pontuais”, que se deviam ao facto de os delegados de saúde não terem “mãos a medir” —, a 24 de junho as autoridades de saúde foram confrontadas com relatos generalizados de casos idênticos.

Foi uma das questões levantadas, foram descritos casos de pessoas que esperaram até nove dias para serem contactadas e de outras que nunca chegaram a sê-lo. Foi a primeira reunião em que esteve o Dr. Rui Portugal. O que ele respondeu foi que, neste momento, tem todos os meios necessários. E disse também que alguns alunos da Escola Nacional de Saúde Pública iam ser recrutados para fazer voluntariado”, conta ao Observador um dos presentes na reunião. “Foi colocada a questão, mas nunca nos disseram quantos médicos de saúde pública estão a fazer este tipo de trabalho, nem na região de Lisboa nem no resto do País.”

De acordo com Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa e da Área Metropolitana Lisboa (AML), que esta segunda-feira criticou duramente a gestão da pandemia na região, apontou o dedo ao Ministério da Saúde e à Direção Geral de Saúde e exigiu a demissão dos responsáveis — “Com maus chefes e pouco exército, não conseguimos ganhar esta guerra” —, não serão os necessários. “Tivemos dois terços dos recursos que o Norte tinha. E nem estou a dizer que o Norte tinha o suficiente”, disse o autarca, também sem revelar números concretos sobre os especialistas em saúde pública em serviço na região.

Dois dias depois de, na passada quarta-feira, Rui Portugal, o coordenador do recém-criado Gabinete Regional de Intervenção para a Supressão da Covid-19 na região de LVT, ter garantido que não faltavam recursos humanos, António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde, anunciou um reforço de 20 novos médicos de saúde pública para os concelhos mais afetados na AML. “Adicionalmente está em curso a entrada de cerca de 80 médicos internos provenientes de vários hospitais, em especial para trabalho em tempo parcial. Estão ainda em formação 40 internos”, acrescentou esta segunda-feira, na habitual conferência de imprensa nas instalações da Direção-Geral de Saúde, elevando a contagem para 140. “Este reforço é crucial para o mapeamento e georreferenciação de todos os casos ativos por concelho e freguesia, para que sigamos rapidamente as cadeias de transmissão da região e as possamos conter”, explicou o governante.

Como se não bastasse o número reduzido de profissionais habilitados para executar a tarefa, revelou Rui Portugal na mesma conferência de imprensa, grande parte dos inquéritos epidemiológicos têm sido particularmente difíceis de concretizar, sobretudo na capital. “Pessoas como eu, que têm experiência a telefonar para determinar isolamentos, em muitos casos, sobretudo em Lisboa, temos uma enorme dificuldade em pronunciar o nome das pessoas, uma enorme dificuldade muitas vezes em comunicar. Lisboa, como capital de um país, tem as suas próprias especificidades: em concelhos com residentes com mais de 100 nacionalidades, que são muito bem vindos e gostamos muito dessa diversidade, tem os seus desafios”, confessou o médico de saúde pública, que não se mostrou disponível para falar ao Observador.

Para já, garantem várias fontes, contrariando as declarações da vice-presidente da ARS-LVT esta terça-feira à Lusa — “Os inquéritos epidemiológicos estão a ser feitos já sem atraso”, garantiu Luísa Silveira —, os efeitos das anunciadas contratações ainda não se fizeram sentir. “Tanto quanto me é dado a conhecer pelos meus colegas, os reforços de profissionais que foram anunciados ainda não chegaram. Os médicos internos da formação geral, em estágio, rodaram agora, portanto saíram uns e entraram outros, mas isso não é propriamente um reforço, é uma troca”, diz o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. “Acho que alguns vão fazer horas extraordinárias ao fim de semana, portanto eventualmente poderão dar algum contributo, mas não sei quantos são nem se já começaram a trabalhar. O feedback que tenho dos colegas é que estes reforços demoram a chegar.”

Para Ricardo Mexia, o principal problema é a ausência de investimento concreto no assunto:

Os internos da especialidade vão ser pagos em horas extraordinárias, e várias instituições de saúde têm estado a disponibilizar, do seu quadro, voluntários para participarem nesta tarefa. Se faltar alguém para cumprir a escala de urgência do Hospital de Santa Maria, do Hospital de Évora, do Hospital do Nordeste Transmontano, julgo que o hospital vai contratar pessoas, vai ao mercado e contrata pessoas. Não percebo porque é que na saúde pública, e numa questão que é central, estamos à espera que haja voluntários”, questiona.

“Não percebo porque é que o próprio Programa de Estabilização Económica e Social previa 700 mil euros apenas para a Saúde Pública. Há 1,2 milhões de euros para investir na TAP; há 850 milhões, que o senhor primeiro-ministro nem se recordava, que foram para o Novo Banco; e para controlar o problema do ponto de vista da saúde pública — que é efetivamente aquele por que ele tem de se controlar — há 700 mil euros, tenho muita dificuldade em perceber isso”, diz.

Questionado sobre se existem no mercado português médicos de saúde pública passíveis de serem contratados, o presidente da associação nacional da especialidade reconhece que não, mas argumenta que não é sequer necessário que parte do trabalho seja feito por eles. Essencial é mesmo que seja feito: “Os inquéritos epidemiológicos, mais complexos, devem ser feitos necessariamente por um profissional de saúde, mas a vigilância ativa, que é ligar para a pessoa para saber se desenvolveu sintomas, e o rastreio de contactos podem ser feitos por outros profissionais. Estamos a falar de tarefas mais simples que, com alguma formação, podem ser feitas por alguém que colabore num call center. Que é de resto o que estão a fazer muitos outros países, como a Alemanha e a França, por exemplo”.

Outra questão fulcral, acrescentam as fontes ouvidas pelo Observador, prende-se com a falta de planeamento por parte do Governo. “A grande questão é que isto devia ter sido antecipado. Sabíamos que, com a redução das restrições, era plausível que isto acontecesse e podíamos ter aprendido até com a experiência do Norte, que teve na fase inicial uma pressão significativa, mas não se acautelou a situação e agora estamos a correr atrás do prejuízo”, critica Ricardo Mexia. Que, tal como Fernando Medina, não resiste à comparação: “A estrutura da saúde pública no Norte é mais robusta, para além de ter mais gente é mais organizada. Esta é obviamente uma avaliação subjetiva — é a minha avaliação —, mas o número de profissionais é objetivo: eles têm mais recursos”.

Questionado diretamente sobre se os delegados de saúde da região de Lisboa não estarão tão bem organizados como os do Norte, Ricardo Mexia respondeu com a génese do gabinete regional dirigido por Rui Portugal:

A prova de que não estava a funcionar é que o próprio Governo implementou uma solução paralela ou alternativa. Objetivamente é o reconhecimento de que a coisa não estava a correr tão bem como deveria. Acho que é uma questão de coordenação e de menor disponibilidade de recursos humanos.”

Pensado para fazer a gestão do combate à pandemia exclusivamente na região de Lisboa e Vale do Tejo, o Gabinete Regional de Intervenção para a Supressão da Covid-19 foi criado a 9 de junho — provavelmente demasiado tarde. “Desde há um mês que a mencionada região tem representado, consistentemente, mais de dois terços do número diário de novos casos notificados no país”, reconhece o despacho que o regula, publicado em Diário da República no passado 19 de junho. “Numa situação destas, um mês é muito, muito tempo”, conclui Ricardo Mexia. “Aliás, uma semana é muito tempo.”