Na Rua da Imprensa à Estrela, na torreira das duas da tarde, a mistura era algo surreal: lá dentro, no palacete, reuniam-se os líderes dos governos espanhol e português, e lá fora manifestavam-se os empresários dos carrosséis a exigirem ser recebidos por António Costa, a pedirem para poderem retomar atividade e a sonorizarem o encontro com palavras de ordem como “queremos trabalhar” e com diversos hits feirantes, como o “Na sola da bota” dos Rio Negro e Solimões. O som é sertanejo, mas na verdade, palmas e tacões também é coisa de flamenco e no palacete António Costa e Pedro Sánchez acertavam passo para outras voltas, no carrossel europeu.

Os manifestantes não tiveram resposta às reivindicações lá fora. Na conferência de imprensa ao ar livre Sánchez e Costa dedicaram-se à próxima reunião do Conselho Europeu, que terá lugar em Bruxelas nos próximos dias 17 e 18 de julho e concordaram que este é o mês em que tem de sair acordo. E sem mais condições, nem cortes no plano de recuperação de 750 mil milhões de euros. Talvez ajustes, “bocadinhos”, no próximo quadro financeiro plurianual, mas sem tocar nos fundos da coesão e da política agrícola comum.

Nas perguntas dos jornalistas, na conferência de imprensa, surge uma sobre a possibilidade de os países aceitarem uma revisão em baixa do quadro financeiro plurianual para conseguirem um acordo já em julho sobre o plano de recuperação pós-pandemia. A resposta vem de António Costa que admite que possa haver aí um ajustamento: “Claro que podemos discutir se é um bocadinho mais ou um bocadinho menos, mas sem cortes na coesão e no segundo pilar da política agrícola comum”.

Costa diz que que o momento não é de “traçar linhas vermelhas, mas de abrir vias verdes”, ainda assim coloca desde já um limite a renegociações em baixa do próximo quadro de fundos comunitários no âmbito do acordo sobre o plano de recuperação europeia. E sobre este último também diz que “não podemos ter um plano que seja poucochinho” e que os ” 750 mil milhões são adequados”.

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Já Sánchez reconhece que a negociação será “difícil” e também defende que não se ceda no montante colocado em cima da mesa pela proposta da Comissão Europeia. Nem mesmo que a maioria destas verbas cheguem por transferência direta. E quer que o tempo de aplicação seja alargado. “Temos de dar um horizonte de temporalidade à gestão de todos esses recursos, suficientemente ampla para que os fundos sirvam para essa verdadeira transformação através da digitalização e da transição ecológica”, disse aos jornalistas.

Lá fora, nas colunas de som dos feirantes, já soava o Grândola e o hino nacional, no jardim gritavam pavões, nos púlpitos os líderes dos governos seguiam neste quadro surrealista sem desviar do traço comum. “O mês de julho é o mês para o acordo na Europa”, alinhou Sánchez apontando que a solução em cima da mesa vai “salvar vidas, empresas e emprego e pode reforçar o projeto europeu nos próximos anos”. Uma linha copy/paste da de António Costa que acrescentou ainda que é “robusta” a proposta feita pela Comissão Europeia e que “responde às necessidades de imediato, mas está também focada na ambição que temos de ter para o futuro”. E também disse quer quer uma resposta “o mais rapidamente possível”. É “muito importante que nos organizemos para apoiar a proposta da Comissão e trabalhar junto dos nossos parceiros para termos em julho um plano de recuperação”.

E aqui, os dois consideram que a “proposta da Comissão é inteligente”, já que impõe como condições para a utilização dos fundos que estejam em causa políticas ou projetos alinhados com o objetivo de transição digital, tecnológica e combate às alterações climáticas. Costa e Sánchez não querem condições adicionais a saírem da discussão que se seguirá no Conselho Europeu. “O programa não é um cheque em branco, nem uma nova troika”, rematou António Costa em mais uma linha vermelha que leva para as negociações em que os países do sul enfrentam os chamados países frugais, desconfortáveis com a proposta da Comissão Europeia para reabilitar a economia afetada pela pandemia.

Amor com amor se paga: Portugal apoia sucessora espanhola no Eurogrupo

E depois de Mário Centeno, Nadia Calviño. Ao comando do Eurogrupo, a ministra espanhola dos Assuntos Económicos, é a candidata de Sánchez. E tal como os espanhóis apoiaram o ex-ministro das Finanças português em 2017, também agora Portugal apoiará o nome apontado pelo Governo espanhol.

António Costa reconhece as capacidades da espanhola, mas também diz que este apoio vem na senda de uma tradição que, defende, deve manter-se: “O apoio recíproco dos dois países às candidaturas internacionais”. Antes disso já tinha ouvido Sánchez elogiar o seu ex-ministro e ex-presidente do Eurogrupo, Centeno.

Mas nem só deste acerto de passo se fará a próxima época política. Sánchez assinalou logo no início da conferência de imprensa que depois de as relações bilaterais “terem hibernado durante o confinamento” é o momento de “relançá-las”. E os dois alinharam para entre o final de setembro e o início de outubro a cimeira luso-espanhola que vai realizar-se na Guarda, em Portugal e dedicar-se, prometeu Costa, ao “desenvolvimento transfronteiriço”.

“Em toda a União Europeia, a fronteira Portugal/Espanha é a única que não é fator de maior desenvolvimento, mas, pelo contrário, tem sido local de despovoamento e de empobrecimento. Temos de robustecer estes territórios para podermos sair da crise”, sublinhou Costa depois de Sánchez lhe ter estendido a passadeira para confirmar a realização da cimeira ibérica.

Esta terça-feira, o primeiro-ministro vai receber o primeiro-ministro italiano Giuseppe Comte e dentro de uma semana vai até Haia para uma reunião com o executivo holandês, Mark Rutte, um dos frugais. E aí não haverá “sola da bota”, nem “palma da mão”, nem “sorriso na cara”. Nem sertanejo, nem um gracioso flamenco.