Título: O Espelho e a Luz
Autor: Hilary Mantel
Editora: Editorial Presença
Ano da Edição: setembro de 2020
Páginas: 880
Preço: 29,90€

O volume final da trilogia de Hilary Mantel sobre Thomas Cromwell foi publicado em Portugal em setembro. O livro saiu no início de março no Reino Unido

Se o tédio é um dos objetivos de Hilary Mantel em O Espelho e a Luz, se é uma estratégia a que decidiu recorrer para entrar na vida por vezes enfadonha de Thomas Cromwell, então o resultado é de excelência.

Quando o leitor entra num texto com a dimensão de O Espelho e a Luz (875 páginas), tem consciência de que vai fazer uma longa pausa da realidade. Por se tratar de um romance histórico, implica ainda o compromisso de viver numa época diferente, entre pessoas desconhecidas, alienado da realidade, onde o tédio por vezes toma conta. No entanto, ao recorrer ao tédio, Mantel empurra muitas vezes o leitor para fora do texto, onde há tanto que se perde por causa do tom monocórdico.

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O Espelho e a Luz é o volume que encerra a trilogia sobre Thomas Cromwell iniciada em Wolf Hall (616 páginas) e continuada em O Livro Negro (436 páginas). São ao todo 1.927 páginas, divididas em três grossos volumes, recentemente publicados em Portugal pela Editorial Presença (Wof Hall e O Livro Negro tiveram uma primeira edição em português, que já não está disponível no mercado, pela editora Civilização).

A trilogia começa com a incessante obsessão de Henry VIII (a tradutora optou por manter os nomes originais das personagens, embora a sua versão em português seja bem conhecida) por um herdeiro masculino. A fraqueza e volatilidade do sexo feminino não permite, segundo o rei, que uma mulher ocupe o trono depois da sua morte. Nessa demanda por um filho e por alianças políticas, Henry VIII viria a casar seis vezes.

Em Wolf Hall acompanhamos os tempos áureos do Cardeal Wolsey como conselheiro do rei. O falhanço em cumprir a tarefa de conseguir o divórcio do rei com Catarina de Aragão (a exceção aos nomes no original) viria a provocar a sua queda. Cromwell é, nesta altura, o secretário de Wolsey e a sua ambição denota-se na habilidade que tem para manipular pessoas e aproveitar ocasiões. Estamos em 1520.

Em O Livro Negro, assistimos à ascensão de Cromwell e à descida de Anne Boleyn até ao seu violento destino. Estamos na década de 1530. O destino do antigo secretário de Wolsey e da rainha é antagónico, embora ande a par. Anne Boleyn é decapitada por pretenso adultério, após o rei se apaixonar por Jane Seymour, e é logo após o momento da execução que começa o último capítulo da trilogia, que, na última página, deixa pistas para o que há de vir:

“Não há fins. Quem pensar que há está iludido quanto à sua natureza. São tudo começos. Aqui está um”.

O Espelho e a Luz estende-se entre maio de 1536 e julho de 1540. São mais 875 páginas que acompanham a vida de Thomas Cromwell, um “faz-tudo” que vai subindo na vida até ser um dos homens mais temidos da época de Henry VIII:

“Apesar de ainda ser um plebeu, a maioria das pessoas concordaria que ele é o segundo homem mais importante da Inglaterra. É o representante do rei para as questões da Igreja. Tem licença para investigar em qualquer departamento do governo ou da casa real. Carrega na sua mente os estatutos da Inglaterra, os salmos e as palavras dos Profetas, as colunas dos livros contabilísticos do rei e a linhagem, a quantidade de hectares e os rendimentos de todas as pessoas importantes de Inglaterra. É famoso pela sua memória (…) As únicas coisas de que ele não se consegue lembrar são aquelas de que nunca teve conhecimento”.

A sua vida é obscura — nasceu pobre, num lugarejo chamado Putney; na década 1520/1530, entrou para o parlamento e demorou pouco até ser agraciado com a atenção do rei e entrar para o seu círculo mais íntimo. Antes disso, perdeu a sua mulher e as duas filhas para a “doença da febre”. Sabe-se que a sua ascensão começou ao serviço do Cardeal Wolsey e prosseguiu ao ponto de ser nomeado Lorde e ganhar fama entre a plebe. O caminho foi longo e Mantel foi meticulosa a percorrê-lo.

Como principal conselheiro de Henry VIII, Cromwell foi a corner stone da Reforma, fundamental na implementação do Protestantismo no Reino Unido, uma iniciativa que teve por base a inconstância emocional do rei e a sua vontade de se divorciar de Catarina, o que o levou a afastar-se do bispo de Roma. A excomunhão do rei causaria o surgimento da Igreja Anglicana. Estes factos históricos são âncora para a imaginação da autora.

As obsessões e violentas diatribes de Henry VIII, a rivalidade da família Tudor com a Casa de York, a morte de Catarina e de Anne Boleyn, o confronto com Roma e o seu bispo são acompanhados, primeiro, e geridos, depois, pela mestria maquiavélica de Cromwell. Tal como Maquiavel, seu contemporâneo, Cromwell geria a corte como ela era e não como uma imagem idealizada pela plebe. E também tal como Maquiavel, Cromwell não mentia: fazia política. Sabia movimentar-se pelos bastidores do poder e entre a súcia que ocupava os corredores palacianos, graças a um conhecimento empírico dado por uma vida atribulada e até trágica.

Um ritmo demasiado lento, um período demasiado longo

A liberdade ficcional permite explorar a psique de cada uma das personagens. O que a história não demonstra, a ficção desenvolve. Não é por mera inocência que Hilary Mantel estrutura O Espelho e a Luz a partir de diálogos entre personagens, intercalados com poucos solilóquios do narrador — a autora cria a ilusão de estar a escrever de dentro da ação, de estar sentada a ouvir os diálogos, registando-os de seguida, sem sob o prisma moral de Cromwell. Para isto, muito contribui o trabalho sobre a linguagem, cujas características envolvem a imaginação do leitor no século XVIII.

Neste campo, Mantel abandona a metáfora e provavelmente os jogos fonéticos para alcançar a eufonia. Acreditamos nós, pois estamos perante uma tradução (da responsabilidade de Beatriz Sequeira). A linguagem não é de tom poético — a autora concentra-se em colar a palavra à pele, ao seu sentido primário. Os matizes do discurso estão no confronto entre discurso público e privado, entre hipocrisia e honestidade. E aqui Mantel encosta-se à excelência. No entanto, mesmo abandonando a metáfora, a palavra é infiel a este princípio quando é utilizada com ironia.

Há redundâncias na narrativa que poderiam ser evitadas segundo o princípio da economia. Por exemplo, descrição da abundância de produtos de determinada região serve para contextualizar o leitor e, mais uma vez, credibilizar a acção. Resulta, mas é escusado repetir a mesma estratégia narrativa quando volta a descrever a mesma região. Longe de ser lépido, o texto ganharia que se lhe encurtasse a vida, como Henry VIII fez a Cromwell, em cerca de 300 páginas. Ganharia em pungência, ficaria livre de excessos e nada perderia o leitor da evolução histórica da época ou das metamorfoses emocionais dos personagens.

A tradução respeita a segunda pessoa do plural, credibilizando o discurso. Mas até aqui o texto parece provocar algum cansaço. Numa tradução, até então, sem grandes sobressaltos, somos confrontados com erros imprevistos:

“Está uma noite calma, não se houve qualquer som vindo do rio…”.

Um ritmo demasiado lento, um período demasiado longo.

No entanto, não deixa de haver universalidade na mensagem de O Espelho e a Luz. O poder mantém as suas características, seja em que época for, e não há reino nem república sem o seu Cromwell, sem as suas peças embriagadas pelo poder:

“Algures — ou talvez nenhures — existe uma sociedade governada por filósofos. Eles têm as mãos limpas e os corações puros. Mas, mesmo na metrópole da luz, existem pilhas de estrume e esterqueiras, pejadas de moscas. Mesmo na república da virtude, é necessário um homem para limpar os dejetos com uma pá, e algures está escrito que o nome dele é Cromwell”.

O capítulo final da trilogia sobre o ministro de Henry VIII é uma máquina construída com atenção a cada peça, numa obsessão pelos pormenores e pelo desenvolvimento, a passos lentos, da personalidade dos seus avatares, principalmente de Thomas Cromwell. O compasso é longo e a sucessão de tempos dentro da narrativa é executada com vagar. A marcação do tempo e o seu andamento transmitem a sensação própria de um voyeur que acompanha a vida de um outro indivíduo.

Em grande parte da narrativa observa-se a banalidade, aqui e ali pontilhada por momentos disruptivos. E é isto que falta na prosa da duas vezes vencedora do Booker Prize (com Wolf Hall e com O Livro Negro) — as disrupções na prosa são escassas; mantém-se o mesmo ritmo, quase sem oscilações.

Um livro ambicioso, mas com mais qualidades do que defeitos.