Os dados epidemiológicos fornecidos pela Direção-Geral da Saúde (DGS) são de baixa qualidade, conclui um estudo do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (Cintesis) e da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. “As potenciais consequências são a tomada de decisões abaixo do ideal ou até mesmo não se usar os dados para se fundamentar as decisões”, escrevem no artigo, inicialmente publicado na plataforma de acesso aberto medRxiv. A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, respondeu em conferência de imprensa que “não são dados de investigação científica, são dados de vigilância epidemiológica”.

A diretora-geral da Saúde acrescentou que a academia tem tido”um papel muito importante na apreciação da qualidade desses dados” e que “faz parte da função [da academia] ver as bases de dados, se estão corretamente preenchidas” e sugere que os investigadores podem “introduzir correções a essa informação e esclarecimentos e melhorar a qualidade dos seus estudos”. O problema, dizem os investigadors, é que a DGS não responde aos pedidos de esclarecimento. “Solicitámos à DGS esclarecimentos sobre algumas questões de dados e ainda aguardamos respostas completas que possam esclarecer alguns desses aspetos”, escrevem os autores no artigo.

A fraca qualidade das bases de dados de vigilância da Covid-19 limita a utilidade para tomar decisões informadas ou para fazer investigação útil”, concluem os autores.

Um pouco por todo o país, os cientistas disponibilizaram-se para fazer investigação com dados epidemiológicos recolhidos pela DGS e poderem contribuir de forma ativa para o controlo da pandemia, uma vez que o esforço de análise multiplicado por várias equipa académicas produziria resultados que a DGS, com a atual sobrecarga de trabalho, não consegue produzir.

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Uma parte das equipas que pediu acesso à base de dados acabou por receber o primeiro ficheiro em abril, mas as atualizações semanais ou mensais nunca chegaram. Uma nova atualização da base de dados só chegou em agosto e com vários problemas. Para começar, as tabelas não eram iguais, os dados e as variáveis estavam formatados de maneira diferente o que fazia com que o trabalho já realizado pelos investigadores tivesse de ser repetido (em vez de estendido) na nova base de dados.

Depois, e comparando os dois ficheiros, a equipa de Cristina Costa Santos, investigadora no Cintesis, verificou que a base de dados de agosto, ainda que tivesse registos novos, tinha 4.075 registos em falta em relação a abril. Além disso, em mais de metade dos casos que estavam presentes em ambas as bases de dados, a informação em “condições subjacentes” (como doença prévia) tinha sido alterada.

Há mortos da primeira base de dados que não aparecem como mortos na segunda, ou mortos na segunda que terão morrido antes da primeira base de dados ser enviada, onde ainda eram dados como vivos. Três homens e uma mulher de 97 anos foram registados como estando grávidos, uma pessoa com 134 anos, 19 pessoas cuja data de diagnóstico é anterior ao primeiro caso registado de Covid-19 em Portugal e dois doentes cuja duração do internamento é expressa num valor numérico negativo.

Homens grávidos, desconhecimento de doenças prévias e 90% dos mortos identificáveis. DGS cedeu dados incompletos e com erros aos cientistas

Na descrição que acompanha os dados de vigilância epidemiológica da Covid-19, a DGS alerta que são dados “com caráter provisório”, que “poderão ser ainda alvo de validação” e que podem “não coincidir com aqueles reportados pelo boletim diário da DGS”. O problema, refere a equipa de Cristina Costa Santos, é que já há pelo menos três artigos científicos publicados com estes dados.

“Os dados do que estamos a falar não são dados de investigação científica, são dados de vigilância epidemiológica e são obtidos através daquilo que os médicos e os laboratórios preenchem e há parâmetros que vêm muito bem preenchidos e há outros, como em todo o mundo, que vêm menos preenchidos”, disse Graça Freitas em conferência de imprensa.

Os autores criticam primeiro a complexidade e morosidade do processo, que obrigada a que os médicos preencham dados em três plataformas diferentes, com formulários mal construídos e que são propícios à acumulação de erros ou que permitem que o utilizador avance sem preencher um único quadro (ficando os dados todos em branco). E deixam sugestões:

  1. simplificar o processo de introdução de dados;
  2. monitorizar constantemente as bases de dados;
  3. aumentar a perceção dos profissionais de saúde sobre a importância e ter bons dados;
  4. fornecer treino adequado aos profissionais de saúde.

“A disponibilização de dados precisos durante uma epidemia é fundamental para orientar as medidas e políticas de saúde pública”, destacam os autores. Graça Freitas reconheceu que os dados “não são perfeitos”, mas que “a grande prioridade de facto é detetar doentes, tratar doentes, isolar contactos e assumir a epidemia”.

“Para efeitos de vigilância epidemiológica queremos vigilância rápida, que nos permita acompanhar a pandemia e tomar medidas. Essa é a função principal: vigiar para agir. Para os estudos mais completos contamos com a rede académica”, disse a diretora-geral da Saúde. Mas, para que a academia possa fazer estudos mais completos (e corretos), precisa de boas bases de dados, como deixaram claro os investigadores.

Atualizado às 23h55 com as declarações de Graça Freitas na conferência de imprensa