Durante alguns anos, Charlie Brooker produziu para a televisão britânica uma série de programas que tinham “Wipe” no nome (“Screenwipe”, “Gameswipe”, Newswipe” ou “Weekly Wipe”) e tinha por hábito assinalar o final do ano com um “Wipe” especial, um episódio que tinha como principal objetivo fazer a revisão do ano que acabava. Com o sucesso de “Black Mirror” — a série distópica mas às vezes realista que tem a relação do ser humano com a tecnologia como centro das histórias — essa tradição desapareceu, ainda que em 2020 tenha regressado com um “Antiviral Wipe” na BBC Two, que se afirmou como um dos grandes programas do ano. Contudo, o que não desapareceu foi a sua capacidade de surpreender a público com algo novo: ainda alguém se lembra de quando “Black Mirror: Bandersnatch” se estreou de repente no final de 2018?

“Black Mirror” regressa esta sexta-feira com uma viagem de 1h30 até 1984

Em 2020, Charlie Brooker decidiu regressar mais uma vez no final do ano. A surpresa tem o corpo aproximado de uma espécie de “Wipe” formatado para mockumentary (ou seja, um documentário ficcionado), produção que apareceu de rompante na Netflix há uns dias: “Death to 2020”. É uma revisão de ano feita seguindo um método algo peculiar, mas é também uma forma de relembrar que certas coisas aconteceram mesmo em 2020, mesmo aquelas que quase juramos que aconteceram há década.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em “Death To 2020”, Brooker – que escreve e produz, em conjunto com Annabel Jones, a sua parceira de “Black Mirror – requisita uma série de atores — Samuel L. Jackson, Hugh Grant, Lisa Kudrow ou Kumail Nanjiani – que interpretam um leque de estereótipos que costumam marcar presença neste tipo de documentários para recuperar imagens, figuras e acontecimentos que fizeram parte de 2020. Em “Death To 2020” encontramos o historiador duvidoso, a figura do conservador norte-americano que desmente os factos, o millennial que se reinventou na pandemia, o CEO de uma empresa de tecnologia, o cientista ou até o cidadão normal, normalíssimo.

É um ano especial para ser revisto assim. Começa com os fogos na Austrália, passa pela pandemia, a morte de George Floyd, a remoção da estátua de Edward Colston em Bristol, Reino Unido, e pelas eleições presidenciais norte-americanas. Se não existisse a pandemia, 2020 seria na mesma um bom ano para Charlie Brooker tentar algo deste género; com a Covid-19 sempre como cenário, tudo fica ainda melhor (só neste caso) e ainda mais vincada a ideia de morte associada a 2020, exercício que que não é exclusivo de Brooker: John Oliver já o tinha feito no último episódio da recente temporada de “Last Week Tonight With John Oliver”.

Falámos com os criadores de “Black Mirror”: “Toda a série é um assassinato psicológico”

Porque 2020 foi um ano demasiado singular, Charlie Brooker tem todas as razões para tentar algo ligeiramente diferente daquilo que fez em outros anos. “Death To 2020” é essa tentativa e se é parecido a alguma coisa, é a documentários da Netflix – os “sérios” – que tentam apanhar este tipo de temáticas quentes e seguir uma série de parâmetros e clichés de realização. “Death To 2020” é sobretudo uma sátira dirigida a essas produções, mais do que uma ironia face ao ano de 2020 propriamente dito: e é preciso ter em conta que documentários que seguem esta fórmula existiram em força em 2020.

O que vemos é Charlie Brooker a olhar para a indústria e a criticá-la a partir de dentro, partindo de uam posição privilegiada, mais uma vez. É um trabalho assente sobretudo na forma, no meio através do qual se comunica. Usar a Netflix para cumprir esta função é um elemento chave. Daí que o interesse de “Death To 2020” esteja relacionado com a apropriação e a manipulação de uma fórmula e não tanto com o conteúdo, que tem os seus momentos, mas não concretiza algo ao nível daquilo que Brooker habituou os seus espectadores ao longo dos últimos — quase — vinte anos.

Podemos tentar desculpar esta última parte por se tratar de um especial. Por ser surpresa. Por provavelmente ter sido escrito e filmado em tempo record mas, sobretudo, porque 2020 tem muito mais intensidade vivido do que satirizado. E a ser satirizado, foi-o muito melhor num momento a quente como aquele que foi protagonizado por John Oliver – a partir de casa – com o seu “Last Week Tonight”. “Death To 2020” não está ao nível dos “Wipe” para a televisão britânica, mas cumpre a função de ser uma despedida de 2020 via streaming.