Depois do caso de Ihor Homeniuk, o ucraniano que morreu nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa, um novo relato referente ao ano de 2015 revela que já nessa altura havia denúncias de agressões e várias outras irregularidades num centro de detenção do Porto.

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De acordo com o Diário de Notícias, a revelação surgiu através de uma investigadora para a Agência para a Prevenção do Trauma e da Defesa dos Direitos Humanos, da Universidade de Coimbra, e teve como base vários depoimentos obtidos junto de estrangeiros que se encontravam detidos no Centro de Instalação Temporária (CIT) do Porto.

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Esses depoimentos, que chegaram ao presidente do conselho científico da agência, o professor catedrático Duarte Nuno Vieira, foram na altura comunicados ao então diretor adjunto desta polícia fronteiriça, o inspetor de carreira José Van der Kellen, que terá reagido através de um email onde classificava a denúncia como “pretensa”, acusando-a de “distorcida”, com “manipulação de informação”, e “ofensiva para a instituição” . O diretor nacional do SEF nesta altura era o juiz António Beça Pereira (nomeado pelo governo de Passos Coelho), e à frente da direção regional Norte estava Cristina Gatões, que ascendeu em 2019 a diretora nacional, tendo saído em dezembro último na sequência do caso Ihor.

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Mais tarde, conta o DN, um relatório da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) viria a confirmar parte das denúncias recolhidas pela tal académica, apesar de determinar que o eventual uso da força fora justificado e proporcionado. Esse alegado uso de força terá sido aplicado, supostamente, por elementos de uma empresa de segurança privada que o SEF contrata para estes centros de detenção (e que, como no CIT de Lisboa, pertencem à empresa Prestibel).

Dentro do conjunto de situações denunciadas que acabaram por ser confirmadas pelo relatório do IGAI falava-se do papel da segurança privada nos centros de detenção. O IGAI frisava então que deixar detidos sob cuidado exclusivo destes prestadores de serviços apresentava grandes perigos e podia até ser ilegal, daí aconselhar que “o sistema de horários de trabalho dos inspetores do SEF, atualmente em vigor no CIT”, fosse reformulado de forma a garantir “a presença física permanente/ininterrupta de, pelo menos, um inspetor, incluindo nos períodos noturnos, de modo a garantir-se o enquadramento funcional contínuo dos trabalhadores de segurança privada.” O mesmo IGAI deparou-se, agora, no EECIT de Lisboa, com uma situação ainda mais extrema: só estavam ali em permanência, dia e noite, vigilantes da mesma empresa de segurança privada, a Prestibel.

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O DN ressalva que no relatório do IGAI foram encontradas algumas inconsistências, por exemplo: uma das alegadas vítimas de agressão, que tinha sido nomeada por outros detidos junto da investigadora da Universidade de Coimbra, só teria estado envolvida numa situação onde de confronto físico que, diz o relatório, acontecera depois da visita da académica. Não é também descrita a força utilizada sobre esse mesmo homem, um cidadão árabe, e com base em testemunhos dos Médicos do Mundo, que só examinaram o detido 15 dias após a visita da académica, esta entidade reguladora diz que “não foi obtida qualquer evidência tendente à coexistência de práticas irregulares e violadoras da lei por parte dos elementos da segurança da UHSA contra o utente contrariamente ao denunciado. Concomitantemente, do conjunto de diligências levadas a efeito, resultou a convicção de que, não obstante a conduta atípica e muitas vezes incorreta, [este] foi sempre tratado com a dignidade que impõem as normas nacionais e internacionais vigentes sobre Direitos Humanos.”

Este é apenas um dos exemplos das irregularidades detetadas neste Centro de Instalação Temporária do Porto em 2015: o IGAI identificou também a colocação indevida ou não justificada de detidos em salas de isolamento; registos incompletos e até falseados; ausência de respeito pelas normas no auto de relação de artigos entregues pelos detidos; e até um sistema de compra de bens alimentares através de vigilantes que, alegadamente, cobravam “comissões”.