Tão cedo o Governo não se livrará dos lapsos europeus. Depois da carta de defesa do procurador José Guerra em detrimento da colega Ana Carla Almeida conter factos falsos, agora é a vez de uma missiva de António Costa para o Parlamento Europeu se basear, na terminologia do Governo, em novos “lapsos”.

Desta vez está em causa uma afirmação do primeiro-ministro enviada para Bruxelas que, além de equívoca, é igualmente contraditória com o que foi afirmado pelo mesmo António Costa em Portugal.

Na carta enviada ao Grupo dos Liberais com a data de 12 de janeiro, a que o Observador teve acesso, António Costa afirma que em Portugal  “a seleção dos três magistrados a indicar para a Procuradoria Europeia não cabe ao Governo, mas sim ao Conselho Superior da Magistratura ou do Ministério Público.”

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Trata-se de uma afirmação que contraria em absoluto o que o próprio Costa tinha afirmado num conferência de imprensa apenas cinco dias antes, a 7 de janeiro. “A quem compete nomear o procurador que representa Portugal na Procuradoria Europeia? Ao Governo. O Governo pura e simplesmente poderia ter escolhido quem bem entendesse. Quem bem entendesse”, enfatizou em defesa da sua ministra Francisca Van Dunem.

Pior: a lei invocada pelo primeiro-ministro na carta enviada ao Parlamento Europeu apenas foi aprovada cinco meses depois do Conselho Superior Ministério Público (CSMP) ter concluído os respetivos concursos e três meses após o comité de seleção ter escolhido a procuradora Ana Carla Almeida como a melhor escolha dos três magistrados nacionais em concurso.

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De facto, o CSMP concluiu o seu processo a 28 de fevereiro de 2019, tendo selecionado três magistrados dos cinco que se apresentaram concurso: José Guerra, João Conde Correia e Ana Carla Almeida. Os três magistrados foram ouvidos a 22 de março de 2019 na Comissão Parlamentar dos Assuntos Europeus e no final de abril de 2019 o Ministério da Justiça fechou o processo de designação, tendo enviado aqueles nomes para o Conselho da União Europeia — cumprindo o seu dever de selecionar três candidatos para serem avaliados por peritos do Conselho.

O problema é que a Lei n.º 112/2019 de 1o de setembro, que adapta o Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho da União Europeia sobre o processo de designação do procurador europeu e que foi invocada por António Costa na sua carta para o Parlamento Europeu, apenas foi aprovada pela Assembleia da República a 19 de julho de 2019. A mesma lei foi promulgada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa a 6 de agosto de 2019, tendo sido publicada no Diário da República de 1o de setembro de 2019. A mesma lei apenas entrou em vigor a 10 de outubro de 2019.

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Conclusão: António Costa garantiu ao Parlamento Europeu que o processo de escolha do órgão de gestão do Ministério Público se baseou numa lei que entrou em vigor a 10 de outubro de 2019 quando o referido processo tinha sido concluído seis meses antes.

Num artigo de opinião escrito no Público desta quinta-feira, ex-diretor-geral da Polícia de Justiça levantou esta questão. “E que efeitos teve esta lei, neste processo? Nenhuns. Recorde-se: esta lei foi apenas publicada em setembro de 2019, mas, na verdade, procedimentos nela previstos para a escolha de candidatos portugueses a procurador europeu, desde logo na esfera do Ministério Público, estavam já concluídos e os candidatos decididos”, afirmou Miguel Romão, que se viu obrigado a demitir-se na sequência desta caso.

Polémica também chega à Bélgica

Na Bélgica, decorre uma polémica semelhante sobre o processo de escolha do magistrado para a Procuradoria Europeia. Tal como o Executivo de António Costa, também o então Governo belga — que entretanto foi substituído por um coligação liderada pelo liberal Alexandre De Croo — se opôs à escolha do comité de seleção do Conselho da União Europeia (UE).

No caso, o Executivo belga não quis que a escolha dos peritos europeus (o procurador Jean-Michel Verelst que tem currículo na área do crime económico-financeiro, sendo diretor do gabinete federal de recuperação de ativos da Bélgica) fosse avante, tendo preferido impor o nome de Yves Van Den Berge.

O problema é que não só Den Berge tinha sido colocado em terceiro e último lugar pelo comité de seleção do Conselho da UE, como na altura da escolha política em outubro de 2019 era diretor-adjunto do gabinete do ministro da Justiça da época.

Jean-Michel Verelst não se conformou e apresentou a 21 de outubro de 2020 uma reclamação junto do Conselho da União Europeia contra a decisão tomada por aquele órgão político da União Europeia (UE). O Conselho tem quatro meses para responder, sendo que, no caso de indeferimento da reclamação, o magistrado poderá recorrer aos tribunais da UE.