A situação de “calamidade pública” provocada pela Covid-19 “continua a agravar-se”. É Marcelo Rebelo de Sousa quem o reconhece, numa curta nota de explicação para a renovação do estado de emergência por mais 15 dias.

Na nota, o Presidente da República cita “os peritos” para responsabilizar pelo agravamento da pandemia a “falta de rigor no cumprimentos das medidas restritivas” e as “novas variantes do vírus SARS-CoV-2”. E reconhece que “a capacidade hospitalar do país está posta à prova” e que “mesmo com a mobilização de todos os meios do SNS, das Forças Armadas e dos setores social e privado [uma referência relevante]”, só há uma maneira de atenuar o impacto da pandemia: a “diminuição drástica de contágios”, que só será possível com “o cumprimento rigoroso das regras sanitárias em vigor e a aplicação de restrições de deslocação e contactos”.

O apelo à responsabilidade dos portugueses surge nesta nota em que o Presidente da República olha para o país e vê que a situação é de excecionalidade. E, portanto, “impõe-se renovar mais uma vez o estado de emergência”.

A renovação do estado de emergência proposta abrange um período de 15 dias, começando à meia-noite do dia 31 de janeiro e terminando às 23h49 de 14 de fevereiro. Isto “sem prejuízo de eventuais renovações” que se sigam. O decreto publicado por Marcelo Rebelo de Sousa no site da Presidência tem, contudo, alguns dados novos e traz alterações face aos anteriores.

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As escolas privadas — e a porta aberta ao “ensino não presencial”

O fecho de escolas decretado pelo Governo e o anúncio do Executivo de que o ano letivo seria interrompido, não dando indícios de permitir a nenhuma instituição avançar para o ensino online (ou “ensino não presencial”) durante 15 dias, gerou muitas críticas nos últimos dias.

As escolas privadas e internacionais contestaram a medida, tendo surgido até reclamações de porta-vozes de escolas internacionais com programas curriculares distintos do português (é o caso de escolas em língua inglesa que seguem o plano curricular do Reino Unido, como a St. Dominic’s Internacional School), que se declararam estupefactos. E os próprios constitucionalistas e especialistas levantaram dúvidas à legalidade da probição do ensino à distância por parte de alunos e escolas que o quisessem ter como alternativa ao (impossibilitado) ensino presencial.

O decreto do Presidente da República deixa algumas notas novas sobre esta polémica, que não constavam do decreto anterior.

Liberdade de aprender e ensinar: podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes, em qualquer nível de ensino dos setores publico, particular e cooperativo, e do setor social e solidário, incluindo a educação pré-escolar e os ensinos básico, secundário e superior, as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, nomeadamente a proibição ou limitação de aulas presenciais, o adiamento, alteração ou prolongamento de períodos letivos, o ajustamento de métodos de avaliação e a suspensão ou recalendarização de provas de exame.

A secção relativa à “liberdade de aprender e ensinar” não constava do diploma anterior — e surge por necessidade após a decisão do fecho das escolas pelo Governo.

Neste excerto novo adaptado a uma nova realidade que o país enfrentará nas próximas duas semanas, fruto do fecho generalizado das escolas, o Presidente da República dá às “autoridades públicas competentes”, seja qual for o “nível de ensino”, poder para impor “restrições” nos “setores público, particular e cooperativo”. Ou seja: o Governo pode impor medidas a escolas privadas e cooperativas. Mas com um “se”.

Escreve Marcelo Rebelo de Sousa que as únicas “restrições” que o Governo pode impor nas escolas — sejam elas públicas ou privadas — são as “necessárias para reduzir o risco de contágio” e as necessárias para “executar as medidas de prevenção e combate à pandemia”. E até explicita o que pode o Governo impor às aulas: “proibição ou limitação de aulas presenciais, o adiamento, alteração ou prolongamento de períodos letivos, o ajustamento de métodos de avaliação e a suspensão ou recalendarização de provas de exame”.

A interpretação parece clara. O Governo pode fazer tudo isto: tem poder para impor a limitação ou o fim das aulas presenciais seja em que escola for; pode alterar datas de exames nacionais ou suspendê-los; pode adiar, alterar ou prolongar períodos letivos — antecipando para agora o período de férias de Carnaval e parte do período de férias da Páscoa, como era intenção do executivo. Aquilo a que o diploma não dá cobertura é a qualquer proibição de ensino online a escolas que o queiram assegurar e a alunos que queiram aprender à distância, tendo as ferramentas necessárias (nomeadamente equipamento, como computadores) para tal.

Direito à Proteção de Dados Pessoais (…). Pode haver lugar ao tratamento de dados pessoais em caso de ensino não presencial e na medida do indispensável à realização das aprendizagens por meios telemáticos.

A expressão “ensino não presencial” surge plasmada no decreto de renovação do próximo estado de emergência e tal dificilmente é um acaso.

Quando o Presidente escreve que no direito à proteção de dados pessoais “pode haver lugar ao tratamento de dados pessoais” em caso de “ensino não presencial” e em caso de “realização das aprendizagens por meios telemáticos“, está a abrir a porta à possibilidade de lecionação digital pelas escolas que a queiram fazer e pelos alunos que assim queiram aprender.

Também há mudanças quanto às fronteiras

Na secção relativas às medidas permitidas para controlar a “circulação internacional”, parte do decreto de renovação do estado de emergência para 31 de janeiro a 14 de fevereiro é igual à que constava do diploma que enquadrava juridicamente os 15 dias anteriores. Mas há um acrescento decisivo.

Lê-se no novo decreto que “podem ser estabelecidos pelas autoridades públicas competentes, nomeadamente em articulação com as autoridades europeias e em estrito respeito pelos Tratados da União Europeia, controlos fronteiriços de pessoas e bens”. Os controlos podem ser “sanitários e fitossanitários em portos e aeroportos” e têm a “finalidade de impedir a entrada em território nacional ou de condicionar essa entrada à observância das condições necessárias a evitar o risco de propagação da epidemia ou de sobrecarga dos recursos afetos ao seu combate”.

Até aqui, nada muda face ao estado de emergência anterior. Mas o PR acrescenta uma possibilidade legal ao Governo. Se até aqui o decreto de estado de emergência permitia às autoridades apenas a imposição de “realização de teste de diagnóstico de SARS-CoV-2” e de decidir o “confinamento compulsivo de pessoas em local definido pelas autoridades competentes”, agora prevê também novos controlos fronteiriços:

Designadamente suspendendo ou limitando chegadas de certas origens”

O que o Presidente da República aqui faz notar é que permitirá ao Governo, de 31 de janeiro a 14 de fevereiro, proibir ou limitar a entrada em Portugal a cidadãos provindos de territórios exteriores (de “certas origens” não identificadas). Esta proibição terá, claro, de se reger por critérios epidemiológicos e de proteção da saúde pública.

“Cobrança imediata” de coimas por crime de desobediência

No artigo 7.º do estado de emergência anterior, lia-se no decreto publicado pelo Presidente da República: “Como previsto e nos termos do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na sua redação atual, a violação do disposto na declaração do estado de emergência, incluindo na sua execução, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência“.

O Presidente, porém, faz uma adenda ao artigo. E escreve agora que para o período de 31 de janeiro a 14 de fevereiro, há um poder das autoridades de fiscalização que fica já estipulado e enquadrado juridicamente. A adenda feita é esta:

Quando haja lugar à aplicação de contraordenações, é permitida a cobrança imediata das coimas devidas pela violação das regras de confinamento

Ao longo dos meses da pandemia, Marcelo Rebelo de Sousa tem reiteradamente elogiado o comportamento dos portugueses no cumprimento das medidas de contenção da pandemia. Porém, o Presidente da República já assumira no Natal que a estratégia de dar mais liberdade aos portugueses durante o período de Natal — aliviando as medidas de restrição — fracassara, tendo efeitos perniciosos na evolução da Covid-19 no país.

Em vez de aliviar o cinto, Marcelo aperta-o agora. A malha de fiscalização dos comportamentos dos cidadãos fica mais justa e as autoridades ganham poder de fiscalização, podendo passar a cobrar de imediato as multas por violação das regras de confinamento.